Who comes after the subject?

¿Cómo pensar al sujeto en tiempos de pos−verdad?

Susana Scramim

Universidade Federal de Santa Catarina – CNPq, Brasil

susana.scramim@ufsc.br

Jorge Wolff

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

jocawolff@hotmail.com

Resumen
Este artículo presenta el dossier «Who comes after the subject» en el contexto del seminario homónimo realizado en septiembre de 2018 en la Universidade Federal de Santa Catarina. Hacemos foco, por un lado, en algunas de las ideas que permitieron organizar teóricamente el seminario, a saber: la emergencia del discurso operado por un sujeto que en la escena contemporánea ha sido constreñido a posiciones conservadoras en oposición a la investigación teórica y crítica poshumanista. Por otro lado hacemos foco en las discusiones derivadas de nuestra participación como comentadores de las ponencias mientras el evento ocurría.

Palabras clave: sujeto / discurso / lenguaje/ política / poesía/ Mallarmé

Who comes after the subject? How to think the subject in the post-truth era. Abstract
This article introduces the dossier «Who comes after the subject?» in the context of the eponymous seminar, held in September 2018, at the Federal University of Santa Catarina. We focus, on the one hand, on retaking some of the ideas with which the organization has theoretically thought about the seminar, namely, emergence of the discourse operated by a subject that in the contemporary scene has been constrained to conservative positions unfolded in opposition to the theoretical research and post-humanist criticism; on the other, in the discussions derived from our participation as commentators of the papers while the event took place.

Key words: subject / speech / language / politics / poetry / Mallarmé

Para citar este artículo

Scramim, Susana y Wolff, Jorge (2019). Who comes after the subject? ¿Cómo pensar al sujeto en tiempos de pos−verdad? El taco en la brea, 9 (diciembre–mayo),45–56. Santa Fe, Argentina: UNL. DOI: 10.14409/tb.v1i9.8187

Recibido: 20/02/2019

Aceptado: 11/03/2019

Un désir indéniable à mon temps est de séparer
comme en vue d’attributions différentes le double
état de la parole, brut ou immédiat ici, là essentiel.
Mallarmé, Crise de vers

 

Em 4 de setembro de 2018, na Universidade Federal de Santa Catarina, professores envolvidos em redes internacionais de pesquisa, articulados entre os projetos «La literatura y sus lindes en América Latina» ( Universidad Nacional del Litoral/Argentina e Universidade Federal de Santa Catarina/Brasil) e «International Cooperation in the Social Sciences and Humanities: Comparative Socio-Historical Perspectives and Future Possibilities» (INTERCO SSH, European Union Seventh Framework Programme EHESS-Paris/ Universidad Nacional del Litoral/Argentina/ Universitat de Barcelona/ UFSC), apresentaram propostas reflexivas à emergência da instância discursiva operada por um sujeito que no cenário contemporâneo tem sido constrangido a posições conservadoras desdobradas em oposição à pesquisa teórica e crítica pós-humanista. Este mesmo cenário contemporâneo constrito, fundamentado na valorização de emoções autorreferentes, demandou-nos a pergunta pelo «como» agir diante desse «retorno» ou «explosão» de uma discursividade autocentrada cujo único referente é um si mesmo que, em que pese sua ampla conexão midiática, não tem a potência dialética de manter em tensão sua «inclusão/exclusão» na e da comunidade. Trata-se de uma emergência teórica —no duplo sentido de necessidade dada pela premência dos acontecimentos atuais bem como de surgimento-aparição de algo para o qual não existiam mecanismos para mensurar suas consequências na prática social— a que o pensamento e a arte são chamados a responder.

Um diagnóstico pouco produtivo é a aposta já tentada pela filosofia humanista no antagonismo entre subjetividade e objetividade, relacionadas à oposição entre expressividade e elaboração formalizada do discurso. É importante não esquecer que o sujeito incorre em paixões porque é capaz de manejar um discurso, portanto, encontra-se com a forma informe apenas porque consegue racionalizar. Nosso contexto contemporâneo está habitado, como se sabe, pela presença excessiva e narcísica de um sujeito autocentrado. Avaliar e mobilizar a força ética e política da teatral heterogeneidade dos «discursos do coração», o que nos remete ao século XVIII e aos modos modernos de enunciação dos discursos do corpo, entre egolatria e acefalia, é tarefa das artes e da filosofia.

 

O grupo de pesquisadores, composto por Luz Rodríguez-Carranza (Leiden Universiteit/Holanda), Analía Gerbaudo (Universidad Nacional del Litoral/Argentina), Max Hidalgo Nácher (Universitat de Barcelona/Espanha), Raul Antelo, Carlos Schmidt Capela, Jorge Wolff e Susana Scramim (esses últimos da Universidade Federal de Santa Catarina/Brasil), articulou suas reflexões a partir dos seguintes argumentos, os quais desenvolvem em algum aspecto as proposições de Jean-Luc Nancy quando de sua apresentação ao volume11. Em 1991, a edit (…) que reuniu as contribuições de um grupo de filósofos europeus à demanda, na década de 1990, pela mesma questão:

1. No âmbito de uma tradição filosófica ocidental, que estatuto terá a categoria filosófica de sujeito quando essa mesma tradição constata uma presença excessiva das prerrogativas do humanismo na configuração de «outra comunidade» mundial?
2. A partir do reconhecimento de que a filosofia comparte responsabilidade no engajamento político do tempo presente no que diz respeito aos desafios enfrentados pela comunidade mundial em assuntos concernentes à ética, uma pergunta deve ser enunciada a priori nessa discussão: que sentido têm a ética e a política para os dias de hoje?
3. Tentar responder a essas questões tem o sentido de romper com e desconstruir a concepção de sujeito plasmada pela tradição humanista ocidental.
4. E, a partir dessas questões, nosso objetivo foi o de examinar as subjetividades pós-humanistas à luz do cenário contemporâneo.

Antes de pensar no depois —«after»— do sujeito, preocupa-nos pensá-lo no seu momento de tomar lugar no mundo, de apresentar-se como engendramento de seu próprio tempo e espaço. Contudo, esse tomar posse de si mesmo no momento em que se pensa como si mesmo foi considerado no âmbito de um pensamento de «si» confrontado com outros, envolvidos em uma rede de singularidades espalhadas no espaço-tempo. O que pensamos sobre o «nosso» tempo nos constitui como pensamento sobre nós mesmos. A partir disso, compartilhamos nossos processos de engendramento, a ponto de perguntar-nos: o que nos reúne nesse seminário? O que enlaça a experiência de uma professora da universidade argentina —com sua pesquisa que tenta mapear a disseminação da «teoria» na América Latina— à experiência agônica de um professor de teoria literária na universidade catalã nas décadas de 2010 e 20? O que envolve e conecta a leitura de uma exposição artística cujo enfoque é a rememoração da resistência aos autoritarismos —que é o culto às identidades de um sujeito opressor— Protest Eine Zukunftspraxis! que esteve em cartaz no Museum für Gestaltung Zurich, entre abril e setembro de 2018, conforme se pode observar no texto «Il n’y a pas le sujet: vive le citoyen! There is no subject. Long live the citizen!», de Raul Antelo, com a performance da escrita de um texto no qual as instâncias discursivas entre sujeito e objeto estão obliteradas, observáveis no texto «o sujeito encena ou sujeito a risco», apresentado por Carlos Eduardo Capela?

A intervenção de Raul Antelo, incisiva, crítica e política, co-move os demais trabalhos no sentido da imaginação e da criatividade crítico-teóricas, marca por sinal de sua atividade intelectual na e a partir da Universidade Federal de Santa Catarina desde os anos 80. Em «Il n’y a pas le sujet! Vive le citoyen!», há uma breve amostra do jogo de seu pensamento que coloca a escritura, o texto ensaístico como proliferação de ideias e leituras superpostas, como ficção crítica e como forma-de-vida, levando a sua potência arquivíolítica a um desconhecido limite. No texto apresentado no encontro, Antelo invoca e desconstrói a noção de «sujeito assujeitado» a partir justamente da morte do autor e do nascimento do leitor meio século atrás: desde Barthes o texto —a poesia— é constante travessia para o outro, permanente endereçamento, como vão ecoar Silviano Santiago, ainda nos anos 1970, e Celia Pedrosa, mais recentemente a propósito desse texto pensado como poesia, já não mais nos velhos moldes formalistas. O passo-além-aquém da teoria crítica habitava uma verdade poético−política que dá seu alarme nos anos 1960 e retorna, espectral e monstruosa, no século XXI através de uma série de perguntas feitas por Alain Badiou no sentido da revolta no momento em que «toda uma agenda em curso» expõe esgarçada a «relação sistêmica», pós−68, «entre terrorismo e estado de segurança». Chama a atenção a produtividade que Antelo tira do par de pensadores franceses, que beberam na mesma fonte da teoria crítica francesa, aparecendo próximos em seus modos de se revoltar e, no entanto, fazendo-o de modos diversos política e filosoficamente. No entanto, essas sublevações têm em comum formas de «tornar político esse elemento impolítico que atravessa a cena pública no século XXI», como propõe Antelo. Ou seja, a aposta em toda e qualquer forma de intervenção estético-política em que a criatividade e a invenção, numa palavra, a poesia esteja ativada em sua potência simultaneamente do sim e do não, em sua potência de gasto ou despesa sensíveis ao desastre que caracteriza a acumulação multiplicada de energia e riqueza concentracionária protegida pelo estado policialesco, capaz de eclipsar o contrapeso que o poder judiciário deveria representar. Trata-se do sujeito neoliberal em sua acepção mais plena, com seus permanentes dispositivos de avaliação, no seio da cultura do test-drive, nos termos de Avital Ronnel, invocada ao lado de Anne Dufourmantelle —na intervenção da colega Analía Gerbaudo, comentada a seguir—. Antelo, por seu lado, e assinalando a marginalidade com que continua sendo vista a América Latina a partir do «primeiro mundo», finaliza o seu texto com um lance de dados em que se encontram ninguém senão Jean-Luc Godard e Mário de Andrade a propósito de William Faulkner! Não passando deste ponto com o spoiler, em «Il n’y a pas le sujet! Vive le citoyen!», com as devidas exclamações, enuncia a necessidade de pensar que «ainda existem elementos, na própria estruturação do sujeito, que nenhuma ordem político-histórica consegue integrar de forma total e acabada», o que equivale a destacar «o com de todo ser-com, de toda comunidade».

Já no texto de Carlos Eduardo Capela, não menos leitor de Nancy, a mesma exaltação do «com de todo ser-com» aparece em ato, em texto que distrai e descobre, joga e estuda ludicamente certas vozes da Odisseia homérica e do Ulisses joyceano com significativa ênfase dada à imagem do pranto em sua relação com o canto e à intimidade que ambos extra-vasam. Capela aponta assim para um «singelo sujeito em falta de si», imaginado através da figura do judeu errante no deserto do real, «pós−heróico greco−feácio−egípcio−judaico−cristão novulysses» de nome Leopold Bloom e visto como ledor das linguagens da máquina do mundo, uma vez que «para o bem e para o mal, as linguagens afetam os corpos que percebem».

Assim, a reflexão sobre a emergência em pleno século XXI de uma categoria discursiva bastante questionada desde o final do século XIX pela psicanálise, filosofia e literatura, tem sua função «justificada» pela abolição da hierarquia entre sujeito e objeto, em direção a uma transformação de todos em objeto, declarando a passividade como o modo de vida de sociedades cada vez mais midiatizadas. No entanto, o próprio sistema de mídia pressupõe uma mediação, já que novamente o que interage na relação são as instâncias discursivas de «sujeito» e «objeto». Nesse âmbito estão colocadas novamente as categorias historicamente delineadas como subjetivas, materializadas em «sentimentos próprios», «opiniões», «desejos», «anseios por liberdade» que se confrontam com aquelas já materializadas como «realidades objetivas» a exemplo de «verdade», «liberdade», «solidariedade» juntamente com seus pares opostos. Se a ideia de «sujeito» abre mão de pensar-se enquanto uma instância que «pensa», nas relações cada vez mais mediatizadas em nossos mundos, não haverá o «abrir» mão dessa que é uma potência de resistência justamente da transformação do pensamento em obediência a uma máquina que reproduz «sentimentos», «opiniões», «desejos», de um «sujeito» hipertrofiado e autoritário.

O impasse fica colocado: como traduzir a emergência de uma instância discursiva que reafirme seu desejo de poder ser confrontado com objetividades como «verdade», «liberdade» e «solidariedade», e, simultaneamente, operar uma «desistência» da substantivação de cada uma dessas instâncias. Mais do que trabalhar essa mediação em termo dialéticos, Jean Luc Nancy nos interpela com mais e mais perguntas em cadeia dialética sem possibilidade de síntese. Desdobrando as afirmações «eu penso», «eu sinto», cumpre seu destino o sujeito que se pergunta «o que pensa em mim quando digo “eu penso”»?; ou ainda: o que «sente em mim, quando digo eu sinto»?

A subjetividade pode ser considerada a partir de uma bibliografia que a vê e a entende a partir de uma noção de mito —moderno seguramente— no entanto, com penetrantes relações com o arcaico. O sujeito tomado como origem de toda a objetividade moderna não escapa à brutalidade do mundo arcaico, que ainda compreende o corpo e a insistência no domínio que se exerce sobre ele a partir de um princípio de conquista e de dominação. Georges Bataille, ao refletir sobre a metonímia do olho humano na sua mediação objetiva com o mundo exterior, apresenta-nos o «olho pineal» e sua emergência em abrir-se sem reservas; ao criar o lugar da «abertura», o pensamento (mesmo que ele nela se dissolva) situa-se na experiência−limite dos limites e não da fixação de um ponto original. De muitas formas, pensar o humano a partir da ideia de sujeito implica incluir na reflexão aquilo que escapa ao humano, sua objetualidade, ou seja, o monstro que o habita, e torna simultâneo o inabitável da noção de sujeito naquilo que nela habita. Toda noção de sujeito, segundo Derrida, exige associação com um princípio de cálculo, conforme ressaltou Analía Gerbaudo em seu texto «Políticas del don y del riesgo, en clave nano», apresentado no seminário. No entanto, essa é a objetualidade que a noção do sujeito ético tem que enfrentar, uma vez que a decisão ético−política tem sempre que passar pelo incalculável e pelo indecidível. A maquinaria conceitual solicita o cálculo que estabiliza o princípio da não estabilização dos valores do sujeito ético em uma origem determinada. Trata-se de encarar a aporia: é simultaneamente impagável, porque impossível de se determinar, e insignificante demais, uma bagatela desprezível, aquilo que a noção de sujeito sustenta. É nesse sentido que a reflexão de Hidalgo Nácher se comunica com a de Gerbaudo. Em seu texto «La herencia teórica, las vueltas del Humanismo y el dispositivo de la deuda», Hidalgo Nácher entrevê nessa intrincada estrutura moderna e neoliberal na qual está envolvida a noção de subjetividade a interpelação de uma culpa, uma atribuição de responsabilidade do sujeito no sem sentido em que se converteu a realidade. Ele estaria em dívida com a comunidade uma vez que não consegue responder efetivamente à demanda do cálculo da vida. Ciente de que não dará conta de pagar sua dívida com a comunidade, o sujeito se põe à espera de alguém que pague por ele o que lhe foi demandado, instalando-se, com isso, uma lógica da indiferença.

Sob o influxo do dom, do risco e da dívida, Gerbaudo e Hidalgo Nácher atacam a eficácia e a eficiência econômica como os valores cada vez mais decisivamente dominantes do tempo presente. Lendo, no caso de Gerbaudo, o «pas de hospitalité» derridiano, em expressão ambígua —ao mesmo tempo ação e negação— que serve ao filósofo franco−argelino para encarar o medo do porvir que se intensifica dramaticamente no aqui e agora, ela invoca no seu texto tanto a «beleza do risco» segundo Anne Dufourmantelle quanto as «nano−intervenções» de Avital Ronnel. Ambas levam água ao moinho contemporâneo da «différance» e da «destinerrância», contra o sujeito endividado da moral, da política e do direito vistos como «cálculo» e em prol de «uma justiça, uma ética e uma democracia por-vir regidas pelos roteiros do dom, da hospitalidade e da resposta ao outro-radicalmente-outro». Na mesma linhagem teórico−crítica, Hidalgo Nácher problematiza as «novas subjetividades endividadas» partindo da experiência em instituições universitárias europeias voltadas para o paradigma do cálculo e da eficácia, neste retorno violento da velha utilidade, com base no pensador italiano Maurizio Lazzarato em La fábrica del hombre endividado. Resposta ao «fim da teoria» e ao humanismo engrossado pelas reviravoltas liberalizantes dos anos 70 e 80, o volume Who comes after the subject, como sublinha Hidalgo Nácher, volta a fazer sentido com mais força na atualidade pela imperiosa necessidade de pensar desvios e dissidências em relação aos dispositivos público−privados em voga. Mas entre os livros de auto-ajuda dos nouveaux philosophes —esses pretensos salvadores do sujeito— da reação francesa dos anos de 1970 e a emergência de um «verdadeiro inconsciente romântico», que Nancy e Lacoue-Labarthe identificam na voragem romântica alemã, cujas relações com a parte francesa desse latifúndio, antiga ou atual, no campo tanto da arte quanto da ciência, inclusive das ciências que definiram os critérios sociais, raciais e genéticos, fixaram-se na carne etnocêntrica de grande parte da intelectualidade do novo mundo americano.22. É o caso do poe (…) Em qualquer caso, o sujeito, si lo hay, é o da différance e do nomadismo, e para lidar com essa dívida infinita é preciso manter em constante dúvida, irresolvida e irresolvível, a noção de sujeito humanista.

Luz Rodríguez Carranza questiona-se, por sua vez, em «De la interpelación a la intervención», se a teoria ou o pensamento estrutural poderá retirar da noção de subjetividade o modo da indiferença? Pela via da psicanálise lacaniana e de Alain Badiou, Rodríguez Carranza destaca, no título do seminário e na proposição da reflexão pelos filósofos que a empenham na década de 1990, a passagem do «what» para o «who» na pergunta que motivava os trabalhos naquele momento. Não se trata de transformar, depois de sua encruzilhada fatal, o sujeito em um objeto, num «what», e sim de confrontá-lo novamente com aquilo que lhe é devido, o seu «who», o seu quem. É desse modo que Jean-Luc Nancy finaliza a introdução ao volume que reuniu os textos daquele seminário: «Who comes after the subject?» Quem pensa quando «penso», senão a comunidade? Ocorre que, lendo Espósito, Rodríguez Carranza expõe a própria renúncia à comunidade que possibilita os laços sociais de nossas sociedades tecnologizadas e midiatizadas, cujos sujeitos assujeitados reaparecem na posição paradoxal de suposto dono de sua liberdade sendo, ao mesmo tempo, mera moeda de troca em forma de subjetividade submetida ao biopoder: «El sujeto sujetado se inmuniza contra una interpelación —la de la comunidade— con otra», ela escreve. Investigadora da obra do ator, diretor e dramaturgo Rafael Spregelburd, Rodríguez Carranza convoca para a discussão uma recente encenação de uma peça do artista e pensador argentino em Bruxelas, com o título de Philip Seymour Hoffman: por ejemplo, em que trabalha o problema da falta de identidade entre os atores a partir do próprio nome do ator norte-americano —lembrando o documentário Jogo de cena (2007), de Eduardo Coutinho, em que atrizes e não atrizes se confundem alegre e melancolicamente, retomando a proposição linguageira e psicanalítica de que «tudo é ficção».

Trata-se sempre do «sujeito assujeitado» e não se trata, portanto, de compartilhar na comunidade emoções determinadas por subjetividades originárias, mas antes deixar-se afetar subjetivamente pelo que é produzido pela objetividade. Deriva disso a potência de um sujeito ao se revoltar, conforme se pode constatar na noção de sujeito em risco do texto de Analía Gerbaudo ou de Carlos Eduardo Capela, e que se apresenta igualmente nas demais intervenções do presente dossiê. Um sujeito em risco pode ser mensurado em sua potência de formular uma imagem de si mesmo no ato de contemplar o mecanismo de seu discurso, isto é, sua potência e não o seu conteúdo expressivo.

Giorgio Agamben, quando analisa o modo pelo qual o ser humano e o mundo se encontram, ou seja, ao analisar o momento presente em que humano e mundo, interioridade e exterior, se veem cara-a-cara no presente, conclui que o homem é um ser sem conteúdo, aliás, apenas em função do reconhecimento de se ver como potência de ser um conteúdo ele o é, entretanto, sem propriamente tomá-lo para si como seu. Quando propõe elaborar uma teoria das paixões, Agamben inclui nesse gesto o pensamento sobre a relação fundamental entre o sujeito e a linguagem. A racionalidade da subjetividade seria definida por uma tentativa de captar «la árthron, la articulación misma entre el viviente y el lenguaje, entre zóon y lógos, entre naturaleza y cultura» (Agamben:108). Seria, todavia, uma tentativa, pois esse gesto demonstra uma desconexão já que implica, no mesmo momento, obsevar a desarticulação: «y las pasiones, las Stimmungen, son lo que se produce en esta desconexión, lo que revela esta diferencia.» (108).

Formula-se, portanto, uma ideia de subjetividade que não possui uma marca fixada em algum lugar ao qual se devesse «retornar» em nome de uma originalidade primordial. Em vez disso, o sujeito decorrente desse processo está livre para viver esse momento presente no qual ele se encontra com sua incompletude e compreende, por fim, que é feito de uma angústia analisável. Mas de que análise se trata e no que ela pode resultar? O sujeito não pode escapar à sua mais completa emoção, à sua mais inteira singularidade como humano, isto é, sua angústia. Nesse sentido, importa analisar essa emoção com aquilo que a constitui e a transforma em algo passível de (co)moção: sua própria linguagem. Contemplar sua linguagem é o modo de produzir subjetividades não essenciais.

Ainda nesse mesmo trabalho de Giorgio Agamben, ele afirma que a ética, a filosofia, é decorrente dessa atividade de interrogar o sentido das palavras. Disso deriva sua conclusão de que a tradução é um dos modos mais eficientes de o homem pensar sua palavra e produzir sua ética. Sendo operada por deslocamentos incessantes, a prática da tradução empenha-se na busca pelo sentido, sem alcançar a plenitude do que é traduzido. Essa operação pode ser comparada à formação de uma subjetividade, isto é, a ação de ver-se a si na força inexpressiva da passagem de uma palavra a outra, de uma língua a outra, de uma expressividade a outra. A tradução faz surgir de um ato objetivo uma potência subjetiva, pois de seu vazio de conteúdo pode ser dito algo de novo, pode surgir dali uma forma/força de revolta contra a sua língua própria. Agamben propõe ainda que importa refletir sobre os processos de deslocamentos de sentido e, portanto, deslocamentos de lugar de enunciação, os quais evidenciam o não-lugar, ou seja, a alteridade produzida por todo ato de enunciação. Ressalta também que, na maioria das vezes, a história da cultura humana é a história de tais deslocamentos, de tais transferências e se não nos damos conta disso, frequentemente ressuscitamos forças e formas «míticas» que dão lugar a deturpações as quais impedem a análise histórica.

Em «Crise de vers», ao tentar falar do novo estado do poema na modernidade, Mallarmé chama a atenção para a sua proximidade com a fala. A gagueira ou o balbucio com as quais se define a obra produz um duplo estado, ao mesmo tempo bruto ou imediato e essencial. Essa indecidibilidade entre o que é essencial ou circunstancial no poema moderno implica a desaparição elocutória do sujeito no poema:

L’oeuvre pure implique la disparition élocutoire du poëte, qui cède l’initiative aux mots, par le heurt de leur inégalité mobilisés ; ils s’allument de reflets réciproques comme une virtuelle traînée de feux sur des pierreries, remplaçant la respiration perceptible en l’ancien souffle lyrique ou la direction personnelle enthousiaste de la frase.33. «A obra pura im (…) (Mallarmé 2003:211)

A elocução no poema será, portanto, substituída pela «iniciativa» dada às palavras, mobilizadas ou montadas pelo choque de sua igualdade, produzindo, no lugar da canção singular, uma orquestração de vozes. Analía Gerbaudo, em sua intervenção no seminário de 2018, «Políticas del don y del riesgo, en clave “nano”», recupera, pela citação do livro La faute à la Mallarmé de Vincent Kaufmann, certo panorama do percurso da aventura da teoria literária na França entre 1950 e 1980. Os anos que antecedem à publicação do ensaio «A morte do autor» por Roland Barthes, em 1968, operam uma desconstrução da ideia de uma subjetividade forte e dependente da capacidade social da expressão, consolidada pelo alto modernismo literário e analisada por Kaufmann como decorrente do gesto mallarmaico. Gerbaudo observa que não houve propriamente nesse âmbito uma ação de excluir do gesto autoral a instância política tanto da literatura quanto no da teoria. O gesto mallarmaico modernista envolveria, outrossim, uma ação interventiva na qual estivessem combinadas a autonomia e a política nas artes. A partir da publicação do ensaio de Barthes, com a emergência em discutir novamente o lugar da subjetividade autoral individualizada na literatura e na teoria, o que se revê é justamente a maneira como a aposta na produção de uma escrita pensada como montagens de planos heterogêneos traz para a cena da escrita outro ponto elocutório. Contudo, este não é a substituição de uma subjetividade por outra, mas sim a reafirmação de uma neutralidade elocutória não objectual. A relação sujeito e objeto volta à discussão na teoria, bem como mistura às demandas políticas imediatas a prerrogativa da quase44. Falar em concei (…) -definição de literatura de Mallarmé.

Tout devient suspens, disposition fragmentaire avec alternance et vis-à-vis, concourant au rythme total, lequel serait le poëme tu, aux blancs ; seulement traduit, en une manière, par chaque pendentif. Instinct, je veux, entrevu à des publications et, si le type supposé, ne reste pas exclusif de complémentaires, la jeunesse, pour cette fois, en poésie où s’impose une foudroyante et harmonieuse plénitude, bégaya le magique concept de l’Oeuvre. Quelque symétrie, parallèlement, qui, de la situation des vers en la pièce se lie à l’authenticité de la pièce dans le volume, vole, outre le volume, à plusieurs inscrivant, eux, sur l’espace spirituel, le paraphe amplifié du génie, anonyme et parfait comme une existence d’art.55. «Tudo se torna (…) (212)

Chamemos a essa alteridade produzida por todo ato de enunciação contemporâneo de a-subjetividade, e contemplemos uma contemplação dessa «desessencialização» das formas míticas e seu limiar com as «formagens»66. O conceito de « (…) no poema «estatuto do desmallarmento», de Angélica Freitas:

minha senhora, tem um mallarmé em casa?
você sabe quantas pessoas morrem por ano
em acidentes com o mallarmé?
estamos organizando uma consulta popular
para banir de vez o mallarmé de nossos lares
as seleções do reader’s digest fornecerão
contêineres onde embarcaremos os exemplares,
no porto de santos, de volta para a frança.
seja patriota, entregue seu mallarmé. olé. (Freitas:53)

O uso do nome do poeta —que propôs de modo contundente a «despersonalização» do poema no fim no século XIX— opera um deslocamento de sentido provocado por uma ressonância entre o nome Mallarmé —que não possui essência semântica— e a palavra «armée» (exército em francês), com «arme» (arma em francês) e, finalmente, com arma em português. Esse encadeamento sonoro produz e conduz o leitor até as fortes «emoções» da temporalidade agônica do «agora». O poema foi escrito nos primeiros anos do século XXI no Brasil, momento esse em que se discutiu e aprovou uma lei de desarmamento da população civil, sancionada pelo então presidente Lula, em 2003. Nesse momento em que o poema foi revisitado para a escrita deste texto, janeiro 2019, novamente o texto emociona o leitor, confrontado que está com o decreto do atual presidente do Brasil que torna mais fácil a aquisição de armas de fogo pelos civis e com o pacote de medidas contra o crime, apresentado por seu ministro da justiça, no qual há uma proposta de ampliação da possibilidade de imputação de inocência para autores de crimes em legítima defesa. Efetivamente, esses decretos e propostas constitucionais não aumentarão apenas os índices de violência social no país, mais do que isso, impõem-se como imagem da vingança, pois com uma «caneta» que expressou a assinatura de um único sujeito (conforme se pode ver na imagem do presidente assinando o decreto com uma «caneta» Bic), cumpriu-se a função do gesto autoritário de «armar» o que deveria estar se «desarmando. O ano de 2003 ressoa no de 2019 e, em coerência com a circularidade da narrativa mítica, o que se encena com esse gesto comparativo, além da repetição, é a força da violência. No nosso agônico agora, uma caneta tem o poder de uma arma. E, no poema de Angélica Freitas, um «mallarmé» ressoa a potência de uma arma, porém, a homofonia não harmoniza o sentido e não apresenta a solução para esse desencontro, no entanto, o leitor atento «escuta» uma possível articulação —a árthron da qual falava Agamben— nessa desarticulação entre o sentido da despersonalização operada por «mallarmé» e «armé», pois surge ali a potência que advém do confronto entre arte e política: um «mallarmé» pode conter também um exército, provocando uma revolução. É notável como um poema escrito nos anos que sucedem à campanha pelo desarmamento da população civil no país faz ressoar uma vingança «por vir», o poema «suspende» o tempo e coloca o ato ali encenado na «agoridade» sem fim. O poema trata de produzir uma emoção cívica na operação discursiva que é, a priori, uma instância racional, um lugar de enunciação, além de, em termos textuais, encontrar-se no limite da prosa. Há um jogo racional ocorrendo no poema. A ideia de arma e de escrita subjetiva estão confrontadas no poema de Angélica Freitas no seu sentido ambíguo entre «desarmar» o cidadão das armas de fogo que possui e «armar» o «sujeito» como instância discursiva, pois se ele desiste de Mallarmé, estará abrindo mão do princípio da despersonalização, e, portanto, se «arma» como «sujeito». Dentro desse modo lógico de raciocinar deriva uma aporia: a de que o sujeito armado —«mallarmado», segundo o poema, e com ecos na expressão «mal-amado» comum aos falantes da língua portuguesa— paradoxalmente é uma essência personalizada que tem motivos muito convincentes para ferir ou mesmo matar outro sujeito, o que seria uma contradição se comparada à proposição discursiva da escrita de Mallarmé de despersonalização do lugar de enunciação. Instaura-se, com isso, uma luta pelo sentido do neologismo «desmallarmento». Instaura-se a dúvida: vale a campanha contra a «subjetividade» ou contra o mito da autonomia do sujeito moderno? Ou com ela será ressuscitado outro mito: o do cidadão aplainado sob as forças contingenciais? Interessante também observar que esse embate pelo sentido do nome, do objeto, da lei, está associado à ideia de pátria no último verso que conclama, convoca, o leitor a um outro mito, o da pátria. Ao final do poema, o leitor se encontra encurralado pela situação de confronto que o texto lhe impõe entre desarmar o cidadão e armar o sujeito e sua inserção no sentimento patriótico. A cena está armada, nesse caso, pensada como montagem, uma cena teatral composta pelo operar da linguagem do poema, que parece criar ambiguidade. Contudo, o resultado é uma aporia. A luta por uma causa «humanitária» tem seu equivalente numa reação bastante violenta, a entrega de um «mallarmé» guarda consigo o seu revés: a formação de uma subjetividade regida por uma lei bastante emocional. Portanto, faz valer uma vertente de sentido: entregue seu «mallarmé» e deixe livre o personalismo que habita sua subjetividade. Por outro lado, a entrega/rejeição de uma arma tem a função/sentido de proteger o sujeito de seu próprio descontrole emocional. Todo mito é ambivalente e contraditório, e o da subjetividade moderna não ficaria fora dessa circularidade. É com uma arma que se faz uma revolução, do mesmo modo que é com armas que se constrói o mito da pátria. O «agora» do poema apresenta simultaneamente esses mitos ao tentar uma articulação entre o vivente e a linguagem, entre natureza e cultura, no entanto, o que se demonstra é uma desconexão produzida justamente pelo operar dessa mesma linguagem. A encenação desses mitos, sua reapresentação na situação agônica do presente, ao revés da ideia de pureza que lhe inspirou, apresenta sua face de morte simultaneamente ao seu nascimento.

Referências bibliográficas

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Freitas, A. (2007). Rilke Shake. Rio de Janeiro: 7 Letras.

Glenadel, P. (2011). Nathalie Quintane: formagens. Revista Alea, 13(2).

Kaufmann, V. (2011). La faute à Mallarmé. L’aventure de la théorie littéraire. París: Du Seuil.

Mallarmé, S. (2003). OEuvres Complétes II. Bibliothèque de la Pléiade. París: Gallimard.

---. (2010). Divagações. Florianópolis: Editora da UFSC. Traducción Fernando Scheibe.

Notas

1.

Em 1991, a editora Routledge publicava um volume chamado a apresentar avaliações e prospecções à época sobre subjetividade, ética e pensamento, editado por Eduardo Cadava, Peter Connor e Jean-Luc Nancy, Who comes after the subject?, reunindo colaborações de Alain Badiou, Etienne Balibar, Maurice Blanchot, Jean-François Courtine, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Vincent Descombes, Luce Irigaray, Sarah Kofman, Philippe Lacoue-Labarthe, Emmanuel Levinas, Jean-François Lyotard e Jacques Rancière, entre outros.

2.

É o caso do poeta e médico brasileiro Jorge de Lima (1893−1953), autor ao mesmo tempo do célebre poema «Essa negra Fulô» e dos Poemas negros quanto do estudo arianista Rassenbildung und Rassenpolitik in Brasiliene, publicado na Alemanha nazista em 1934 e posteriormente, com leves correções, mas também em alemão, no Brasil, em 1951.

3.

«A obra pura implica a desaparição elocutória do poeta, que cede a iniciativa às palavras, pelo choque de sua desigualdade mobilizadas; elas se iluminam de reflexos recíprocos como um virtual rastro de fogos sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou a direção pessoal entusiasta da frase» (Mallarmé 2010:164).

4.

Falar em conceitos ou definições no trabalho de Mallarmé nos remete ao que Derrida nominou como double bind, a dupla injunção, o trabalho duplo e ativo do poeta com a língua. Encontrar ou deixar-se encontrar com a «pureza» da língua é deixar-se contaminar justamente no ponto de liberação das virtualidades do sentido. Por isso, a impossibilidade de fixar o sentido no conceito e a nomeação desse «estado» como «quase». Nesse sentido, o trabalho do poeta e do filósofo−teórico, do poeta e do crítico provoca intervenções mútuas, contaminando-se com seus jogos discursivos em busca da afirmação de seus modos de existir. Pensar é pensar com palavras, nos diz Derrida. E, por sua vez, Mallarmé: faz-se um poema com palavras. Cf. Derrida; cf. Mallarmé (2003).

5.

«Tudo se torna suspense, disposição fragmentária com alternância e face a face, concorrendo para o ritmo total, o qual seria o poema calado, nos brancos; somente traduzido, de certa maneira, por cada pingente. Instinto, insiste, entrevisto em publicações se, se o tipo suposto, não permanece exclusivo de complementares, a juventude, dessa vez, em poesia, em que se impõe uma fulminante e harmoniosa plenitude, gaguejou o mágico conceito da Obra. Alguma simetria, paralelamente, que, da situação dos versos na peça se liga à autenticidade da peça no volume, rouba/voa, além do volume, a vários inscrevendo, eles, sobre o espaço espiritual, a rubrica amplificada do gênio, anônimo e perfeito como uma existência de arte» (Mallarmé 2010:165).

6.

O conceito de «formagem» foi desenvolvido pela poeta Nathalie Quintane e, apresentado ao público brasileiro pelo estudo e tradução ao português que a poeta Paula Glenadel realizou de alguns livros da colega francesa. Em «Nathalie Quintane: formagens», a tradutora e poeta ressalta a dimensão indecidível desse conceito —«nem forma, nem formação, a formagem corresponderia a uma experimentação: a produção assistida de uma experiência através da escrita. A formagem é uma encenação do começo (título de um dos livros de Quintane), num processo que a noção do quase (presente no título de outro de seus livros) pode ajudar a compreender.» CF. Glenadel.