Intervenciones

Redes digitais e a memória dos sábios indígenas

Digital networks and the memory of indigenous ancestral wisdom

Las redes digitales y la memoria de los sabios indígenas

Flávia Fernandes de Carvalhaes
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Leiliani de Castro
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Mônica Panis Kaseker
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Wagner Roberto do Amaral
Universidade Estadual de Londrina, Brasil

Redes digitais e a memória dos sábios indígenas

Revista de Extensión Universitaria +E, vol. 14, núm. 21, e0009, 2024

Universidad Nacional del Litoral

Recepción: 31 Julio 2024

Aprobación: 12 Septiembre 2024

Resumo: Apresentamos um relato de experiência do projeto de extensão “Redes digitais e a memória dos sábios indígenas nas escolas estaduais indígenas do norte do Paraná”, da Universidade Estadual de Londrina, que atuou em cinco comunidades da região Norte do Paraná, no Brasil, entre 2023 e 2024. Por meio de oficinas de memória, interculturalidade e comunicação audiovisual nas escolas Kaingang e Guarani, a proposta foi colaborar para a revitalização da transmissão oral de conhecimentos entre gerações. Trata-se da continuidade de um trabalho que se desenvolve desde 2013 para fortalecer a educação escolar indígena específica, intercultural, bilíngue e comunitária nessas comunidades.

Palavras-chave: escola indígena, comunicação audiovisual, interculturalidade, memória dos sábios, extensão universitária.

Resumen: Traemos un relato de experiencia del proyecto de extensión “Redes Digitales y Memoria de Sabios Indígenas en las escuelas estatales indígenas del norte del estado de Paraná”, de la Universidad Estadual de Londrina, que trabajó en cinco comunidades de la región Norte de Paraná, en Brasil, entre 2023 y 2024. A través de talleres de memoria, interculturalidad y comunicación audiovisual en escuelas Kaingang y Guaraní, la propuesta fue colaborar en la revitalización de la transmisión oral de conocimientos entre generaciones. Esta es la continuación del trabajo que se viene realizando desde 2013 para fortalecer la educación escolar indígena específica, intercultural, bilingüe y comunitaria en estas comunidades.

Palabras clave: escuela indígena, comunicación audiovisual, interculturalidad, memoria de los sabios, extensión universitaria.

Abstract: We present an experience report from the extension project “Digital networks and the memory of indigenous sages in indigenous state schools in northern Paraná”, from the State University of Londrina, which worked in five communities in the North of Paraná region, in Brazil, between 2023 and 2024. Through memory workshops, interculturality and audiovisual communication in Kaingang and Guarani schools, the proposal was to collaborate in the revitalization of the oral transmission of knowledge between generations. This is the continuation of work that has been carried out since 2013 to strengthen specific, intercultural, bilingual and community indigenous school education in these communities.

Keywords: indigenous school, audiovisual communication, interculturality, memory of ancestral wisdom, university extensión.

Introdução

O projeto de extensão “Redes digitais e a memória dos sábios indígenas nas escolas estaduais indígenas do norte do Paraná” se articulou na Universidade Estadual de Londrina (UEL) nos anos 2023 e 2024, a partir do financiamento do Edital do Programa Universidade Sem Fronteiras (USF). A proposta se baseou na utilização das tecnologias da informação e comunicação, em especial o audiovisual e as redes digitais na internet, como ferramentas de fortalecimento e qualificação da educação escolar indígena. Tendo como objetivo registrar e disseminar saberes dos/das anciões/ãs indígenas por meio audiovisual para compor um acervo de memórias e saberes tradicionais para a utilização pelas escolas indígenas da região Norte do Paraná. As atividades de campo foram realizadas em cinco territórios indígenas, Guarani e Kaingang, situados na região Norte do Estado do Paraná: Posto Velho, Laranjinha, Pinhalzinho, Barão de Antonina e Apucaraninha.

As trilhas metodológicas do projeto nos levam para o desenvolvimento de uma tecnologia social da memória, buscando estimular as comunidades envolvidas a construírem, organizarem e socializarem suas histórias, em especial nas escolas estaduais indígenas, valorizando as experiências e os saberes das pessoas mais velhas. Partiu-se das concepções de interculturalidade e memória, nas visões Guarani e Kaingang, para criar dispositivos de comunicação e registro que possam ser utilizados como disparadores para circulação de saberes e fortalecimento da conexão entre jovens e velhos/as, escola e território. Ao apresentarmos o projeto para lideranças e professores indígenas das terras indígenas envolvidas, estes elaboraram coletivamente um nome nas suas línguas indígenas denominando o projeto como Nhanemba’e kuaa ũn sanh jykre que, na língua Kaingang significa “memória dos mais velhos” e na língua Guarani significa “nossa sabedoria”. Iniciamos desta forma esse projeto com um modo intercultural de nominar a proposta!

A seguir relatamos perspectivas históricas, teóricas e metodológicas que subsidiaram as atividades realizadas, sendo que relatos de experiências vividas no percurso de realização do projeto de extensão se somam aos debates conceituais. Inicialmente, situamos a experiência atual no contexto de continuidade de projetos de extensão anteriores desenvolvidos nas mesmas comunidades. Foram quatro edições focadas na implementação da educação escolar indígena de qualidade, conforme garantida na legislação brasileira, sendo esta específica, bilíngue, intercultural e comunitária. Em seguida, refletimos sobre pistas teóricas que subsidiaram nosso percurso, mais especificamente as noções conceituais de interculturalidade e memória. Na continuidade debatemos sobre a construção metodológica das vivências em campo e a produção audiovisual como ponte entre gerações, territórios e saberes. Por fim, são partilhadas algumas considerações que se pretendem provisórias sobre as experiências vividas.

Dez anos depois: o reencontro com professores indígenas em diálogo com suas memórias e ancestralidades

O projeto “Redes digitais e a memória dos sábios indígenas” se apresenta como sequência e resultado de ações extensionistas realizadas junto às escolas estaduais indígenas localizadas na região norte do Paraná nos últimos dez anos. Ações que foram se amadurecendo conforme o próprio movimento dos/as professores/as indígenas e lideranças dos territórios onde essas escolas se localizam, numa dinâmica de aprendizagens, diálogos e vínculos afetivos constantes entre professores/as e estudantes extensionistas e os/as sujeitos/as destas comunidades.

Importante constatar que as demandas por ações extensionistas junto a essas comunidades nos anos de 2010, principalmente na área da educação, se apresentou pela associação de dois fatores: a expansão estadualizada da oferta da educação escolar indígena no Paraná com ausência de investimentos para formação continuada pelo Governo do Estado; e as fragilidades educacionais dos/as acadêmicos/as indígenas ingressantes na UEL, identificadas pela Comissão Universidade para os/as Indígenas (Cuia) desta universidade (Amaral, 2019), exigindo ações voltadas à formação de professores/as indígenas e não indígenas nas escolas estaduais indígenas na região norte do estado do Paraná.

Como resposta a estas demandas, um grupo de professores/as vinculados à Cuia elaborou um projeto de extensão a partir de edital do Programa Universidade Sem Fronteiras (USF), sendo este um programa de financiamento de ações extensionistas para as universidades estaduais paranaenses da SETI-PR. O projeto então aprovado foi denominado “A Escola Indígena e seu Currículo: lugar da pertença e das identidades”, com vigência do mês de julho de 2013 a junho de 2014. Contou com uma equipe composta por um profissional indígena recém-formado e cinco estudantes de graduação, todos bolsistas. O projeto elaborou um diagnóstico da educação escolar indígena e das escolas indígenas nas seis terras indígenas da região norte do Paraná, por meio de trabalho etnográfico em cada uma dessas comunidades e duas oficinas de formação continuada para os/as professores indígenas e não indígenas, além da presença de caciques e lideranças. Tais oficinas objetivaram apresentar os aspectos de potencialidade e de contradições identificados em cada uma das comunidades no que se refere aos aspectos do bilinguismo, da organização curricular e da gestão das escolas indígenas. Foi constatada, ao longo desse projeto, a presença subalternizada e silenciosa dos/as professores indígenas nas escolas indígenas diante do significativo número de professores/as e diretores/as não indígenas que atuavam nesses espaços.

Na sequência, novo projeto de extensão à SETI-PR foi aprovado pelo Programa USF, sendo denominado “Bilinguismo, currículo e formação de professores e gestores das escolas indígenas do norte do Paraná”, com vigência no período dezembro de 2015 a dezembro de 2016, contando com uma equipe bolsista de dois profissionais recém-formados e um estudante de graduação. Neste projeto, o novo foco da ação foi o fortalecimento e a articulação dos/as professores e gestores/as indígenas das escolas indígenas por meio de cinco oficinas formativas realizadas nas dependências da UEL. As oficinas versaram com maior profundidade acerca das experiências de educação bilíngue, de organização curricular e de gestão escolar desenvolvidas e desejadas pelos/as professores/as indígenas e suas comunidades, contudo, nem sempre efetivadas dada a presença majoritária de professores/as não indígenas, todos eles/elas com contratos precários e temporários com o Estado. Também foram trabalhados aspectos da legislação educacional no Brasil e da educação escolar indígena como modalidade educacional. O projeto se encerrou culminando na realização do um I Encontro Regional das Escolas Indígenas do norte do Paraná que, além de possibilitar o intercâmbio de experiências com pesquisadores/as indígenas de outras regiões do país, possibilitou a constituição da Comissão de Articulação dos Direitos das Escolas Indígenas do Norte do Paraná (Cadeinp) pelos professores/as indígenas. Cabe destacar que, das 39 escolas estaduais indígenas em funcionamento na ocasião no estado do Paraná, somente duas delas tinham diretores indígenas, sendo os dois diretores vinculados às escolas indígenas da região norte do Paraná. Das nove escolas estaduais indígenas localizadas na região norte do Paraná, no período, havia apenas dois diretores indígenas e atualmente apenas duas são geridas por professores não indígenas.

A terceira edição do projeto de extensão teve vigência no período de abril de 2017 a abril de 2018, sendo denominado como “A formação de gestores e professores da escola indígena bilíngue, diferenciada e intercultural e suas narrativas curriculares de resistência”, contando com uma equipe bolsista formada por uma profissional indígena recém-formada e quatro estudantes de graduação, sendo um deles também indígena. Os objetivos desta edição do projeto se voltaram à qualificação e fortalecimento dos membros da Cadeinp e à sistematização e produção do material de apoio pedagógico acerca da realidade das escolas indígenas do norte do Paraná. Também foi objeto de trabalho desta equipe o início da elaboração de uma página virtual para dar visibilidade às escolas estaduais indígenas e à Cadeinp. Para tal, foram realizadas quatro oficinas de sistematização e de produção de material de apoio pedagógico intercultural e bilíngue no formato de uma Coletânea Temática de Educação Escolar Indígena voltada à formação dos/as professores indígenas e gestores das escolas indígenas, contando com a participação dos membros da Cadeinp. A equipe do projeto também garantiu a participação dos/as professores/as indígenas da região norte do Paraná em todas as Pré-Conferências locais de Educação Escolar Indígena realizadas nas terras indígenas dessa região, por meio de transporte da UEL, contribuindo na sistematização das discussões e proposições.

A quarta edição do projeto foi denominada “Entre os saberes da escola indígena e da universidade: a comunicação audiovisual como elemento de expressão, articulação e fortalecimento da organização dos professores indígenas”, em vigência no período de outubro de 2018 a setembro de 2019, contando com uma equipe composta por um profissional recém-formado e quatro bolsistas de graduação, sendo três deles indígenas, todos bolsistas. O projeto garantiu a vinculação de um número maior de acadêmicos/as indígenas nesta ação, possibilitando que os/as mesmos/as vivenciassem seu duplo pertencimento (Amaral, 2010), se reconhecendo e se afirmando indígenas e, ao mesmo tempo, acadêmicos/as, neste caso, extensionistas em suas comunidades de pertencimento. Pelo amadurecimento das experiências de extensão junto às comunidades indígenas participantes desse processo, o projeto foi batizado com o nome indígena Nhanderekô Eg Kanhró, confluência de expressões de duas línguas indígenas distintas – a Kaingang e Guarani – sinal de interculturalidade entre estes sujeitos e da própria universidade. O projeto desenvolveu oficinas de formação de professores, lideranças e estudantes indígenas do ensino médio a partir de quatro eixos: bilinguismo, currículo, organização da escola indígena e formação de lideranças. Resultou na produção de seis documentários, sendo um de cada uma das cinco terras indígenas envolvidas e um geral com depoimentos de todas elas. Ainda no período da pandemia de covid-19, todos os vídeos foram socializados com as equipes das escolas para indicação de revisões para a edição sendo lançados, de forma remota, no ano de 2020 (Amaral, Kaseker, 2019)1.

Com o avanço das ações anteriormente realizadas e o vínculo criado com as escolas, a quinta edição do projeto foi denominada “Redes digitais e a memória de sábias/os indígenas nas escolas estaduais indígenas do Paraná”, em vigência no período de agosto de 2023 a julho de 2024, contando com uma equipe composta por uma profissional recém-formada e cinco bolsistas de graduação, sendo três deles indígenas, além de outras/os estudantes de graduação e de pós-graduação colaboradoras/es. A demanda voltada aos saberes dos/as sábios/as e anciãos/ãs das comunidades foi identificada na edição anterior do projeto a partir dos relatos dos/as professores/as indígenas ao lamentar, com tristeza, que as pessoas mais velhas – enciclopédias culturais vivas – estariam falecendo sem haver nenhum tipo de registro de suas memórias. Assim, o projeto objetivou registrar saberes dos/as sábios/as indígenas por meio audiovisual e por meio de oficinas sobre memória, interculturalidade e currículos das escolas indígenas, voltadas à formação de professores/as e comunicadores/as indígenas nas comunidades indígenas envolvidas. As oficinas foram voltadas ainda para a instrumentalização de professores/as e jovens comunicadores indígenas para obter maior qualidade nas gravações e no uso de equipamentos, sendo produzido um manual trilíngue orientador para isso. Ao ser aprovado, a equipe coordenadora do projeto (constituída interdisciplinarmente por docentes do Jornalismo, do Serviço Social, da Psicologia e de Letras) realizou reunião com caciques e diretores/as indígenas das terras indígenas envolvidas para apresentar e debater sobre o projeto, o que será refletido ao longo deste texto. É importante mencionar que quatro das cinco comunidades atendidas estão em territórios demarcados e uma delas, Posto Velho, está em processo de retomada. Entre os cinco territórios, apenas um tem a língua indígena como idioma materno.

Nesse sentido, o projeto “Redes digitais e a memória de sábias/os indígenas”, como passou a ser chamado pelas/os envolvidas/os, passou a desenvolver ações de sistematização e produção de registros audiovisuais que servirão como materiais de apoio pedagógico numa perspectiva crítica, bilíngue e intercultural, bem como para o fortalecimento das escolas indígenas dessa região. Entre essas ações, estão previstas práticas comunicativas que ajudam na articulação e diálogo cultural entre os saberes da escola indígena e da universidade, como o uso do audiovisual.

Esse texto evidencia ainda como ações extensionistas podem ser desenvolvidas de forma sistêmica com uma permanência respeitosa, dialógica e legitimada pelas comunidades, as quais também assumem seu papel educativo na relação com a universidade. A extensão, assim, passa também a ser um instrumento de luta e compromisso dos povos e comunidades indígenas para sua visibilidade afirmativa e pelo fortalecimento dos seus territórios, a partir dos rastros históricos e memoráveis de suas e seus guerreiros/as.

Lugares de memória

A primeira etapa de atividades nesta edição do projeto para a formação da equipe foi realizada no campus da UEL. Rodas de conversa com convidados, leituras, debates sobre documentários foram compondo um repertório de letramento sobre as cosmologias Guarani e Kaingang e o papel dos anciãos nessas culturas, características das comunidades e escolas, aspectos da legislação sobre educação escolar indígena. A equipe também foi convidada a participar de eventos promovidos na universidade pela Comissão Universidade para os Indígenas (Cuia) e de aulas no Ciclo Intercultural de Iniciação Acadêmica dos Estudantes Indígenas da UEL. Também participamos da Festa do Emi, uma festa típica Kaingang, que comemora a colheita do milho. Os estudantes não indígenas lutaram com os pés na terra, correram a corrida dos troncos e experimentaram comidas típicas como urtiga, emi e assado de tatu. Essa fase de preparo da equipe foi importante para nossa aproximação com as comunidades e para a compreensão da interculturalidade na prática, de corpos presentes. E nesse processo surgiu mais um elemento inspirador: a ideia do Kofá.

Como nos explica a pesquisadora Kaingang Marlei Bento (2004):

“a palavra Kófa, no idioma Kaingang, pode significar ancião(ã), velho(a) ou sábio(a), ou seja, pessoas que possuem saberes, entendimentos e conhecimentos tradicionais diversos, adquiridos ao longo de sua existência. Trata-se de algo a se orgulhar como um título de guardião de muitos conhecimentos, sejam eles territoriais ou culturais”. (p. 275)

Assim como nós pretendíamos, Marlei, em sua pesquisa de mestrado, aspirou ouvir as histórias dos mais velhos e utilizou como disparadores os “lugares de memória”. Para os Kaingang, os espaços levam consigo memórias e o retorno a eles permite o acesso a determinados fatos, narrativas e histórias. Ao ouvir as histórias dos Kofá, a comunidade passa “a se apropriar desses espaços nas suas múltiplas dimensões, o que possibilita a reprodução desses relatos entre as diferentes gerações” (Bento, 2004, p. 175). Ao estudarmos a metodologia de Marlei Bento, percebemos que aí estavam pistas importantes para nossa caminhada. A mesma lição que tivemos em outras experiências no contato com os Xamõi na cultura Guarani, onde os sábios mais velhos são guias espirituais e seres de sabedoria ancestral.

Era preciso estar presente por mais tempo e caminhar juntos por essas trilhas da memória de cada território. Foi quase natural que cada comunidade indicasse por meio da escola e das lideranças, os guardiões da cultura que nos contariam histórias à beira do fogo e nos levariam aos lugares de memória: uma casa de reza, uma árvore centenária, uma caverna, uma trilha de arapucas, um bosque. As fogueiras deram conta de histórias de assombração, lembrança sobre velhos e velhas rezadoras que já estavam em outro mundo, causos de saci, de remédios e curas. Embora, tenhamos sido alertados sobre a dificuldade em conquistar a confiança dos mais velhos, acabamos tendo a gentil presença de mais de um entrevistado em cada local.

Trilhas na mata: noções de interculturalidade e memória que se constroem nas fronteiras

O projeto de extensão, desde seu início, encontra inspiração e alicerce em conhecimentos que se articulam desde as epistemologias do sul, saberes estes que foram sistematicamente invisibilizados nos processos de colonialidade do saber (Quijano, 2005). Destacamos, em especial, duas noções conceituais, que denominamos oferendas analíticas, que se apresentaram como transversais nos debates teóricos, trabalhos de campo e diálogos com as comunidades indígenas, a saber: memória e interculturalidade.

Porém, antes de apresentarmos essas duas oferendas, ressaltamos que temos uma consciência que se pretende mestiza (Anzaldúa, 2005) e que considera que vivenciamos e relatamos as experiências do projeto de extensão também desde o nosso lugar privilegiado de pessoas brancas, desde as nossas posições de pesquisadores/as que produzem ciência em uma universidade pública do Sul do Brasil. Deste modo, partimos da premissa de que por mais que tentemos hibridizar nossos modos de pensar e de sentir as comunidades indígenas por onde transitamos, por mais que tentemos colorir nossas vivências e análises com jenipapo e urucum, há uma escrita (im)possível em nós.

Assumimos, portanto, a premissa de que há fronteiras que nos dividem e que se articulam como produções políticas e ficcionais, sendo que estas demarcam diferenças de acesso a direitos e de experimentação da realidade. Saberes que se constroem nas fronteiras assumem dimensão política e relacional entre territórios, espaços cujas diferenças se evidenciam e se delineiam nos intercruzamentos entre racionalidades coloniais, normativas, instituídas, bem como entre traçados periféricos, marginais e fugitivos (Nogueira, 2007). Apesar disso, consideramos também que “por cada frontera existe también un puente” (Valdés apud Anzaldúa, 2005, p. 712), sendo a aposta na produção audiovisual uma tentativa de construir relações, conexões e elos.

Assim, afirmamos, ainda, a importância dos “saberes localizados” (Haraway, 1995) como pistas para a produção criativa e posicionada de conhecimentos e de modos de intervir, bem como na tentativa de subverter, ainda que parcialmente, estruturas opressoras de significação. Nesta direção, buscamos alicerce também em Glória Anzaldúa (2000), que nos convoca a questionar a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o mapa e o compasso: “Sintam seu caminho sem anteparos. Para alcançar mais pessoas, devem-se evocar as realidades pessoais e sociais — não através da retórica, mas com sangue, pus e suor” (p. 235).

Logo, balizados por duas trilhas conceituais - memória e interculturalidade -, reafirmamos ao longo do processo de tecedura do projeto de extensão a importância do “aprender, desaprender e reaprender” (Walsh, 2017) como exercícios que reivindicam deslocamentos epistemológicos e metodológicos e justiça epistêmica. Nos convidamos, sobretudo, a fazer o pensamento e as práticas se movimentarem em aliança com o pesquisador indígena Bruno Ferreira Kaingang,2 que nos ensina que para o povo Kaingang a relação de aprendizagem entre professor/a e estudante se configura na perspectiva do aprender – aprender. Todos ensinam, todos aprendem. Humanos e não humanos. Importante também no percurso formativo foi a interlocução com o professor Guarani Kaiowá Joaquim Adiala Hara, do Mato Grosso do Sul, mestrando em Educação na UEL.

A partir do reconhecimento de saberes que se constroem nas fronteiras, a perspectiva interseccional também se afirmou como referência já na etapa de seleção dos/as estudantes bolsistas do projeto, pois utilizamos como parâmetro o interesse em garantir diversidades étnica, racial e de gênero na composição da equipe. Formulada por pesquisadoras negras, a noção de interseccionalidade afirma a inexorável conexão entre marcadores sociais de gênero, raça, etnia, religião, corpo e de classe nos processos de produção de modos de existência e de fenômenos sociais como o racismo, as desigualdades sociais, os preconceitos, exclusões, dentre outros exemplos (Akotirene, 2019). Nesta perspectiva, a equipe do projeto foi constituída tendo como prioridade a presença indígena de estudantes homens e mulheres das etnias Kaingang e Guarani, bem como docentes e estudantes não indígenas brancos/as, negros/as e com ascendência asiática.

Demarcar a noção de fronteira como baliza também nos remete a importância de debater no projeto de extensão sobre a noção de interculturalidade. Partimos da localização de Catherine Walsh (2017, p. 49), que anuncia e problematiza “la interculturalidad como un principio ideológico, de lucha y de transformación radical; no simplemente de relaciones culturales o sociales sino de las instituciones y estructuras de la sociedad”. Situar a produção teórica e metodológica intercultural não se refere unicamente a estabelecer relações entre diferentes grupos étnicos, mas sim em construir um outro lugar de enunciação e participação política que considera que a produção científica se articula necessariamente no plural, de modo pluriversal e atenta às diferenças culturais, desestabilizando categorias binárias edificadas no sistema mundo colonial. Tal articulação, como analisa Bhabha (2007), remete a importância da criação de um entrelugares de enunciação dos sujeitos, que se produzem de modos localizados, dinâmicos, múltiplos, descontínuos e conflituosos, criando outros modos de contar a história e de organização dos saberes.

Para refletirmos sobre a importância da produção intercultural no projeto de extensão, destacamos, como exemplo, que logo no segundo mês de desenvolvimento das ações foi articulada uma roda de conversa com lideranças, pedagogos/as e professores/as das escolas indígenas para apresentação da proposta. Ao mencionarmos sobre a possibilidade dos/as estudantes entrevistarem os/as mais velhos residentes das terras indígenas no processo de produção audiovisual, fomos surpreendidos com a ponderação do grupo de que dificilmente eles/elas partilhariam memórias com um/uma estudante universitário, por desconfiança histórica. A partir dessa pontuação tivemos que repensar os traçados metodológicos estabelecidos inicialmente e entender que o projeto caminhava na direção de reconhecer e estabelecer interlocuções com moradores/as das aldeias para realização das entrevistas. Tal experiência nos lembrou novamente que há que construir com os povos indígenas e não para os povos indígenas.

A noção de memória também assumiu um sul no projeto de extensão, uma referência analítica nos processos de elaboração e desenvolvimento. A memória é cultivada pelos povos indígenas nos processos de escuta dos mais velhos e da partilha de saberes que se transmitem por meio da oralidade. Logo, partimos da premissa de que a memória, como um modo estratégico de luta, possibilita o resgate e registro do passado, se articulando como uma importante estratégia política de reflorestamento e de reconstrução localizada do passado, do presente e do futuro (Gouvêa et al., 2018).

Partimos do pressuposto, portanto, que as tentativas históricas de apagamento das memórias dos povos originários se configuram como um modo de exercer dominação, como uma lógica extrativista que insiste em interditar e subalternizar saberes e perspectivas não coloniais de existência. Tendo a importância da memória como referência analítica e de luta, assumimos a proposta política e metodológica de registro em vídeo dos saberes dos/as mais velhos/as de cinco territórios indígenas no Paraná, considerando a produção audiovisual como um dispositivo de comunicação e de luta que cria pontes entre saberes e fortalece a educação escolar indígena.

Desse modo, na tentativa de revisitar e produzir memórias, bem como de debater a noção de interculturalidade, realizamos também em cada TI uma atividade em grupo com os/as professores/as, estudantes e lideranças das escolas indígenas. O coletivo se reunia em torno de um tecido de cor cru cortado em forma de círculo, sendo este reflorestado com tarjetas de papel que continham frases, desenhos, imagens, trechos dos projetos políticos pedagógicos de cada escola e das legislações estaduais e federais. Essa experiência possibilitou tentativas de tradução e de partilha de memórias e saberes interculturais entre a equipe do projeto de extensão, pedagogos/as e docentes das escolas indígenas e crianças e adolescentes estudantes nas TIs acessadas.

A partir da construção deste mapa vivo das impressões dos coletivos foi possível debater sobre as duas noções conceituais destacadas de modo prioritário no projeto de extensão. A aposta foi que a circulação dessas memórias e saberes interculturais assumem relevância nos processos de demarcação de saberes ancestrais nas escolas indígenas, assim como nos ensina a escritora e poeta Márcia Kambeba (2020, p. 32): “Faz parte da educação indígena respeitar o ancião, ouvir as narrativas contadas e guardar no coração”.

A perspectiva de construção de saberes e memórias em círculo também se articulou por meio das vivências em torno de fogueiras que nos aqueceram nos períodos da noite. Em torno do fogo, as histórias dos mais velhos, sobretudo as histórias sobre os espíritos das matas, eram partilhadas com o grupo produzindo medos e encantamentos, bem como a experiência em nossos corpos sobre a importância do desacelerar e do aprender no tempo da natureza, assim como ensina Márcia Kambeba (2020):

“O tempo do aprender indígena ensinado pelos mais velhos não é o do relógio, que marca a educação vinda da cidade, com hora para começar a terminar, conteúdo específico para cada série. O tempo da aldeia obedece às rodas de cantoria, de narrativas, da lua cheia, do maracá. Falo do tempo circular que fortalece a união porque cria campos energéticos de luz. Esse saber se traduz na psicologia e na pedagogia da aldeia”. (p. 26)

Ainda seguindo nesta mesma trilha, de registrar e fazer circular memórias e saberes interculturais e ancestrais, apostamos na produção audiovisual como dispositivo pedagógico e de luta, sendo que em cada TI visitada foi entrevistado um ou mais velhos/as, como contamos a seguir.

O audiovisual como ponte

A linguagem audiovisual reedita e atualiza, em nosso entendimento, a vocação oral para a transmissão de conhecimento que é própria dos povos originários. No Brasil, essa apropriação do audiovisual pelos povos indígenas se inicia a partir do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA), criado pelo indigenista Vincent Carelli em 1986. Em 1997, o VNA passou a conduzir oficinas de produção audiovisual para que os/as indígenas retratassem a realidade em suas comunidades, uma iniciativa inédita até então. O projeto formou dezenas de cineastas, entre eles Isaac Pinhanta, da etnia Ashaninka: “a gente quer entender tudo isso, a gente quer entender esse processo, porque a gente só vai se defender quando entender esse processo e esses instrumentos. O computador, a escrita, a tv e o vídeo são instrumentos ideais para aprofundar o nosso conhecimento” (Pinhanta apud Pereira, 2010).

A incorporação de dispositivos tecnológicos nos modos de vida, bem como a digitalização dos corpos indígenas por meio do audiovisual estabelece relação com as práxis comunicacionais que lhes são próprias: a corporeidade e a oralidade, especialmente com as gerações mais jovens, constituindo formas de manutenção e continuidade de aspectos culturais e cosmogônicos, assim como uma ferramenta de luta. “Nós somos a geração pra filmar, pra gravar, pra deixar a história que vai passar pra outra geração”, diz Abel Tsiwari, realizador indígena da etnia Xavante, aldeia Namunkurá (MT) (citado por Costa e Galindo, 2018, p. 28).

Sobre os usos e sentidos do audiovisual para os povos indígenas, Costa e Galindo pontuam três hipóteses: a) essa apropriação da tecnologia e da técnica do audiovisual contribui para a organização e fortalecimento do movimento indígena; b) essa organização do movimento indígena resiste contra o aniquilamento social e cultural vivenciado no processo histórico brasileiro e c) trata-se de um contexto de hibridismo tático contra a representação depreciativa construída historicamente sobre os povos indígenas do país (2018, p. 22).

Para Kaseker, Galassi e Ribeiro, esse fenômeno em que os/as indígenas brasileiros/as passam a registrar e publicar imagens e narrativas próprias constitui um giro decolonial. “A comunicação consiste no elemento central das políticas de identidade indígena e a autorrepresentação demarca a ruptura com a imagem do índio genérico, estereotipado e parado no tempo, o que consideramos uma política de identidades em luta” (2022, p. 63). Para além do uso do termo decolonial, poderíamos considerar um giro anti-colonial, na visão de Cusicanqui (2021, pp. 101-102) ou até mesmo contra colonial, conforme defende Antônio Bispo dos Santos (2023, p. 53). O primeiro passo nessa trilha foi reunir lideranças, diretores/as e pedagogos/as das escolas para uma roda de conversa para apreciação do projeto e de seus objetivos e metodologias. Nesse encontro realizado na Universidade Estadual de Londrina em 19 de setembro de 2023, estiveram presentes 19 pessoas representando os cinco territórios. A proposta foi avaliada positivamente e aceita por todos os presentes, porém, foi nos alertado sobre uma possível dificuldade: é comum que os/as anciãos/ãs indígenas resistam ao uso de câmeras e gravadores, ainda mais na possibilidade de serem entrevistados/as por não indígenas com quem não tenham familiaridade. Por outro lado, informaram que já há iniciativas em algumas comunidades de equipes próprias de comunicadores/as que já têm realizado alguns registros em audiovisual. Foi sugerido então que o projeto se desenvolvesse em duas frentes: a formação da equipe de educadores/as, por um lado, e o apoio às equipes de produção audiovisual e comunicação de cada comunidade.

Com esse reposicionamento do projeto, surgiu a proposta de construir um manual de produção audiovisual trilíngue, com vídeos de apoio e uma oficina em que gravaríamos somente uma entrevista piloto em cada território (Martins et al., 2024). O manual pode ser acessado por meio do link: https://drive.google.com/file/d/1w4ocfR9AwET3OsPmf2ZlH15Ziw7Sr1zo/view

A potência da diversidade se fez presente na hora de arquitetar o manual audiovisual. Várias áreas do conhecimento confluem nesta produção e no pensamento acerca de sua utilidade. Estudantes de jornalismo, medicina, psicologia, serviço social e design gráfico, compuseram o mosaico interdisciplinar deste projeto. Seus conhecimentos, independente se oriundos da academia ou da vida, somaram ao pensarmos as propostas de oficina, bem como o desenrolar de cada capítulo.

Manual audiovisual
Figura 1
Manual audiovisual
Projeto Redes Digitais, 2024.

Na fase de formação, a qual teve início em agosto de 2023, mergulhamos no pensamento indígena e partilhamos curiosidades e identificações com as cosmologias Kaingang e Guarani. Ouvimos sábios indígenas e cultivamos o respeito pelo que estava por vir. Portanto, as viagens do projeto simbolizaram o momento de exercer a troca intercultural da qual tanto falamos. Fez-se importante a compreensão geral de que pisaríamos em solos sagrados, repletos de história, luta e memória de um povo.

A elaboração do manual, portanto, teve início em outubro de 2023. Chegamos à sua versão definitiva após sete meses, em maio de 2024. Estruturado em quatro capítulos, sendo eles: 1) Conheça a câmera, 2) Enquadramentos e planos, 3) Dicas de gravação de entrevistas e 4) Dicas de áudio, o projeto gráfico envolveu a todos. A escrita foi partilhada entre estudantes de jornalismo e a revisão se deu de modo coletivo, valorizando a compreensão ou até mesmo o estranhamento daqueles/as que não eram familiarizados com a linguagem audiovisual, bem como seus termos técnicos e tudo o que se propunha orientar ali. A partir de tais deslocamentos, criamos pontes para um material mais assertivo.

Após revisarmos a versão em português, prezando por um texto simples e direto, os/as integrantes indígenas traduziram cada capítulo para o Kaingang e Guarani. Ainda que os bolsistas Kaingang e Guarani responsáveis pela tradução fossem de outras regiões, onde há variação linguística em relação ao idioma praticado nas comunidades atendidas, a presença das línguas indígenas foi considerada importante no manual. Deste modo, surgiu a compreensão do material enquanto ferramenta pedagógica para as escolas indígenas no debate sobre as incontáveis violências contra as línguas indígenas e silenciamentos ao longo da colonização. Retomar a fala e elaborar a escrita é um importante aspecto da luta indígena e de seu fortalecimento cultural.

Assim como na fase de formação do projeto, a qual antecedeu as viagens às cinco terras indígenas, cada avanço na concepção deste material foi deliberado por todo o grupo. Feitas as traduções, atravessamos outras etapas, sendo elas a fotografia, os vídeos ilustrativos de cada capítulo e a diagramação. Compreendemos, enquanto grupo, a importância da representatividade indígena na composição deste material. Nesse sentido, o grupo concluiu que seria importante que Ana Lúcia Ortiz, da etnia Avá-Guarani, estudante de psicologia e Caio No Sãnh Deodoro, da etnia Kaingang, estudante de design gráfico, ambos bolsistas do projeto, protagonizassem as fotos e vídeos de todo o manual.

Os vídeos, por fim, resumem os capítulos e demonstram tudo o que foi dito ao longo deles. Estão todos disponíveis no canal do YouTube Cuia UEL.3 A Carta aos Parentes, assinada por quatro estudantes indígenas participantes do projeto, abre o Manual Audiovisual (2024) e ressalta sua importância enquanto ferramenta de luta:

“gostaríamos de compartilhar com os parentes a importância dos manuais audiovisuais como ferramentas essenciais na luta em defesa dos nossos direitos indígenas. O uso desses recursos audiovisuais não apenas fortalece a memória histórica, mas também contribui para a conscientização e engajamento sobre a nossa luta. Através de documentários, filmes, vídeos educativos e outros formatos, é possível contar histórias, que ilustram a riqueza da nossa cultura indígena, bem como os desafios e triunfos que enfrentamos diariamente. As memórias dos anciões são como rios que fluem desde tempos imemoriais, carregando consigo a essência de quem somos”. (p. 3)

As viagens aos territórios começaram em março de 2024. Nas primeiras oficinas, levamos uma versão provisória do manual, e fomos ainda fazendo revisões e aprimorando a apresentação até a versão final, impressa em A4 e encadernada em espiral. Cada comunidade recebeu três cópias impressas e os links para acessar a versão digital e os vídeos explicativos que acompanham o manual, com a proposta de serem consultados pelos/as comunicadores/as indígenas na medida de seu interesse e necessidade. Importante destacar a participação efetiva dos/as caciques, lideranças e diretores/as das escolas indígenas no processo de coorganização das oficinas, seja na organização das rodas de conversa em torno da fogueira, na condução das trilhas de memórias nas aldeias, ou mesmo na identificação e convite das sábias e sábios que foram envolvidas/os nas gravações.

Durante uma das primeiras oficinas, foi nos solicitada orientação sobre o manuseio de alguns tablets que as escolas haviam recebido, o que resultou em mais uma possibilidade de uso da comunicação audiovisual nas atividades pedagógicas. Sendo assim, nas viagens que se seguiram, nossa equipe ofereceu também orientações aos demais grupos sobre o uso desses equipamentos para a produção de pequenos vídeos. Na comunidade de Pinhalzinho, fomos informados que a grade curricular já incluía uma disciplina intitulada Laboratório de Escrita e Produção Audiovisual, o que se mostrou como mais uma oportunidade em relação ao fortalecimento do uso do vídeo como recurso pedagógico. Em três das cinco comunidades, a produção audiovisual já fazia parte das atividades de grupos envolvidos na revitalização cultural e em projetos relacionados à memória cultural e histórica das comunidades: Pinhalzinho, Laranjinha e Apucaraninha. Nesses casos, fortalecemos o vínculo e a abertura para futuras parcerias de apoio mútuo. Ação de extensão da universidade para aldeia e desta para a universidade efetivamente colaborativa e compartilhada de forma intercultural!

Considerações provisórias: rastros

Os encontros vivenciados nas trilhas da memória, nas conversas à beira do fogo, no reflorestar de memórias e afetos que se desenham na cartografia da interculturalidade, no sentar-se em frente aos anciãos e anciãs e sentir fluir as histórias, tudo isso, nos deixa com a sensação de que aprendemos e apreendemos. Os indígenas mais velhos com os quais gravamos foram voluntários e demonstraram estar bem à vontade durante e após as gravações, ainda mais que na maioria dos casos foi um familiar quem fez as perguntas, a equipe atuou apenas como facilitadora. Um dos diretores indígenas de uma das escolas nos disse, na despedida de uma das oficinas, que foi tão bom que nem parecia ser uma formação, uma oficina. “Foi leve e lúdico”, disse ele.

Nesse percurso, foram realizadas dez oficinas nas terras indígenas assinaladas na introdução, possibilitando debates sobre memória, interculturalidade e produção audiovisual com 61 pessoas que participaram diretamente das oficinas, embora o número de pessoas da comunidade que interagiram com a equipe tenha sido muito maior, seja nas refeições, passeios ou conversas na beira da fogueira e outros lugares inusitados. Foram também realizadas sete entrevistas gravadas em meio audiovisual, sendo acessados seis anciãos e uma anciã, sempre ao ar livre e conduzidas por familiares delas/les, membras/os das comunidades participantes das oficinas. Entretanto, a partilha das informações e das técnicas de gravação, os resultados materializados em imagens capturadas, as orientações sobre estratégias de produção de vídeos/fotografias, embora fundamentais, ao final, não parecem ser os “resultados” mais importantes.

O essencial foi mesmo essa oportunidade coletiva de pausa, esse olhar no olho, rir e chorar juntos, sentir esse espaço e alcançar a dimensão dessa experiência intercultural. Sentimos como se abrisse uma brecha no tempo e no espaço para essas sensibilizações mútuas. Acreditamos que isso vai reverberar na maior presença das/os velhas/os, das memórias e do audiovisual nas escolas. Apostamos também que estas vivências extensionistas nos convidam a repensar a urgência dos modos produtivistas com que temos articulado ciência nas universidades públicas brasileiras, contribuindo assim no processo de reflorestar o ensino superior com saberes historicamente subalternizados. Por fim, afirmamos a importância dos encontros que revitalizam todos que orbitam nas escolas indígenas, que compartilharam essas experiências e que podem e devem circular saberes ancestrais e novos no andarilhar entre a aldeia e a universidade.

Referências

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Notas

1) Todos os documentários podem ser acessados pelo Canal CUIA UEL por meio do link: https://www.youtube.com/watch?v=YIe-Kkx_G2w&list=PLS8XfjZJrCTlOTItdazZtVy1mfRfW6kJq
2) O professor foi convidado a fazer uma roda de conversa com a equipe em 22 de setembro de 2023, na etapa de formação, e sua fala resultou em um texto que será publicado com o título: Cosmologia e Educação Kaingang: o papel dos velhos.

Información adicional

Contribución del autor/a (CRediT): Metodologia: Fernandes de Carvalhaes, F., De Castro, L., Kaseker, M. P. y Amaral, W. R. do. Redação e revisão: Fernandes de Carvalhaes, F., De Castro, L., Kaseker, M. P. y Amaral, W. R. do.

Biografia del autor/a: Flávia Fernandes de Carvalhaes: Escritora de Cartas. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente no Departamento de Psicologia Social e Institucional e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Londrina (PPGPSI/UEL). Membra da equipe de coordenação da Comissão Universidade para os indígenas - CUIA e do coletivo Entretons. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social e Institucional, interessando-se pela pesquisa nas seguintes temáticas: Epistemologias Feministas, Teoria Queer e Estudos Decoloniais.

Biografia del autor/a: Leiliani de Castro: possui graduação em Jornalismo pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). É pós-graduada em Comunicação e Cultura Política e atualmente cursa o Mestrado em Comunicação também pela UEL. Participa dos grupos de pesquisa, ensino e extensão: Entretons: Gênero e Modos de Subjetivação e Decolonialidades na Comunicação (DECO). Atua como profissional recém-formada no projeto “Redes Digitais e a memória dos sábios(as) indígenas nas Escolas Estaduais Indígenas do norte do Paraná”.

Biografia del autor/a: Mônica Panis Kaseker: Doutora em Sociologia pela Universidade Federado no Paraná (UFPR), com estágio doutoral na Universidad Autónoma Metropolitana Xochimilco - México DF. Jornalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (PPGCOM/UEL). Desenvolve pesquisas sobre produção audiovisual, interculturalidade e decolonialidade. É membra da Comissão Universidade para os Indígenas da UEL e professora no Ciclo Intercultural de Iniciação Acadêmica dos Estudantes Indígenas da UEL.

Biografia del autor/a: Wagner Roberto do Amaral: Graduado em Serviço Social, Mestre e Doutor em Educação, Pós-doutorado em Estudos Interculturais pela Universidad Veracruzana/México) e Pós-doutorado em Educação Superior para Povos Indígenas na América Latina pela Universidad Nacional Tres Febrero/Argentina. Professor Associado do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina. Coordenador da Comissão Universidade para os Indígenas (CUIA) da UEL e membro da CUIA do Paraná.

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