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Sobre o ensino de Filosofia no ensino básico brasileiro: reflexões a partir do esclarecimento e da maioridade kantianos

Sobre la enseñanza de la Filosofía en la educación básica brasileña: reflexiones desde la ilustración kantiana y la mayoría de edad

On the Teaching of Philosophy in Brazilian Basic Education: Reflections from Kantian Enlightenment and Adulthood

Odair Guimarães
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil
Matheus Felipe Silva
Universidade Estadual Paulista, Brasil

Sobre o ensino de Filosofia no ensino básico brasileiro: reflexões a partir do esclarecimento e da maioridade kantianos

Tópicos, núm. 45, e0031, 2023

Asociación Revista de Filosofía de Santa Fe

Recepción: 01 Junio 2021

Aprobación: 01 Octubre 2021

Resumo: Avaliar o papel do ensino da Filosofia na educação básica requer a contextualização do problema e uma retomada de sua história, se fazendo necessário retratarmos sua historicidade e seus avanços e retrocessos, pois a educação brasileira no decorrer dos anos perpassou por diversas reformas, porém estas, elaboradas para atender as necessidades de cada período. Propomos então uma reconstrução da inserção do ensino de Filosofia na educação básica nacional, entendendo que este, ao final desse processo formativo, há a assunção legal da maioridade civil. Nesse sentido, buscamos paralelos com a filosofia kantiana no que se refere a maioridade e esclarecimento.

Palavras-chave: Ensino, Filosofia, Kant, Maioridade, Esclarecimento.

Resumen: Evaluar el papel de la enseñanza de la Filosofía en la educación básica requiere la contextualización del problema y una revisión de su historia, siendo necesario describir su historicidad y sus avances y retrocesos, ya que la educación brasileña a lo largo de los años ha pasado por varias reformas, pero estas fueron diseñadas para satisfacer las necesidades de cada período. Proponemos entonces una reconstrucción de la inserción de la enseñanza de la Filosofía en la educación básica nacional, entendiendo que esta, al final de este proceso formativo, culmina con la asunción legal de la mayoría civil. En este sentido, trazamos paralelos con la filosofía kantiana en lo que se refiere a la mayoría de edad y a la Ilustración.

Palabras clave: Enseñanza, Filosofía, Kant, Mayoría de Edad, Ilustración.

Abstract: Evaluating the role of the teaching of Philosophy in basic education requires contextualizing the problem and reviewing its history, and it is necessary to describe its historicity and its advances and setbacks, since Brazilian education has undergone several reforms over the years, but these were designed to meet the needs of each period. We therefore propose a reconstruction of the insertion of the teaching of Philosophy in national basic education, understanding that this, at the end of this formative process, culminates with the legal assumption of the civil majority. In this sense, we draw parallels with Kantian philosophy with regard to the age of majority and the Enlightenment.

Keywords: Teaching, Philosophy, Kant, Adulthood, Enlightenment.

1. Introdução

As agendas educacionais são temas de debate constante tanto em aspectos curriculares como enquanto política pública, o que engloba agentes políticos, setores da sociedade civil, financiamento e sua finalidade social. Isso reflete o reconhecimento sobre a importância do período escolar formativo na vida de cada indivíduo, compreendido em anos fundamentais na formação de características próprias e de aprendizados sobre a sociedade e construção de perspectivas e expectativas.

Com variações governamentais, com mudanças nos sistemas produtivos, com diferentes concepções morais e filosóficas em cada período histórico de uma sociedade, o campo educacional também passa por alterações de modo a refletir essas mudanças e mesmo implementá–las nas gerações que passam por seus períodos formativos. Só é possível compreender a Educação se esta for vista no contexto mais geral do estado da sociedade a que ela se relaciona.

São as políticas educacionais, formadas a partir de debates da sociedade civil, de setores produtivos e dos agentes políticos, que definem os currículos, conhecimentos e habilidades esperados das crianças e jovens que são educadas dentro de ambientes educacionais formalmente reconhecidos e legitimados pelo Estado. Há uma racionalização sobre o que deve ser ensinado, por quem, para quem e com qual finalidade, sendo este conjunto a base fundamental para a definição das disciplinas que devem compor os currículos.

O currículo escolar brasileiro passou por mudanças ao longo de sua implementação, desde formas mais decentralizadas até o estabelecimento de um currículo mínimo comum. As disciplinas ensinadas também foram modificadas ao longo do tempo. No ensino de línguas, tivemos o latim, o francês e mais recentemente o espanhol, mas hoje prevalece o inglês; tivemos ensino de música, de artes, Filosofia e Sociologia, mas hoje essas disciplinas figuram de forma optativa; o ensino religioso e disciplinas ligadas à moral e ao nacionalismo foram implantadas no passado e hoje são pautas de alguns grupos da sociedade; com o aprofundamento da sociedade capitalista e da sociedade da informação e da comunicação, disciplinas como empreendedorismo e informática são apresentadas como essenciais, mas ainda não foram plenamente implementadas.

Junto às discussões sobre quais disciplinas devem ser ofertadas, há a organização da oferta segundo a etapa formativa. O ciclo do Ensino Médio possui uma particularidade que é sua finalização no mesmo período em que os jovens completam 18 anos e se tornam legalmente maiores, responsáveis por seus atos, assim como são impelidos a assumir responsabilidades da vida adulta. Nesse sentido, adquirem direitos plenos de participação política, na cidadania, e de estabelecimento de negócios no campo privado.

No presente texto, buscamos debater as possibilidades da oferta da disciplina de Filosofia junto no ensino básico em vias da formação para a maioridade. Para isso, primeiro traçamos brevemente um plano geral do histórico da oferta de Filosofia nas escolas brasileiras, debatendo fatores sociais, econômicos e políticos relevantes de cada período quanto à permanência ou exclusão dessa oferta. Essa seção serve para apresentar o contexto nacional, entendendo que, na seção seguinte, são apresentados documentos oficiais contemporâneos que regem a Educação no país. Em seguida, buscamos compreender as abordagens kantianas sobre esclarecimento e maioridade, traçando paralelos com o sentido corrente e legal do termo maioridade. Conjuntamente, apresentamos a importância da Filosofia enquanto disciplina escolar, para então estabelecermos intersecções entre a maioridade legal e o debate filosófico do que compõe a maioridade.

2. O movimento pendular do ensino de Filosofia no Brasil

O ensino de Filosofia já era praticado no período colonial, mas este foi introduzido pelos jesuítas e seguia o contexto de resistência à Reforma da Igreja, assim como relacionado à difusão da catequese. A instrução era um privilégio das classes dominantes, sendo que a Filosofia se constituía na soma entre teologia e erudição na reprodução dos hábitos das classes dominantes. No período seguinte, o Império, os cursos de Filosofia tornaram–se obrigatórios nos ginásios e liceus das províncias, mas reformas mudaram esse quadro ao tornar a disciplina como curso livre ou optativo. Na República, com a Reforma Benjamin Constant, de 1890, o campo educacional foi fortemente influenciado pelo positivismo, levando à ênfase do estudo das ciências. A reforma de 1915 tornou facultativas disciplinas que faziam parte dos componentes filosóficos.[1]

Pela Reforma Rocha Vaz, de 1925, a Filosofia e a História da Filosofia passaram a figurar como disciplinas obrigatórias nos cursos então chamados de Segundo Grau. Mas a Reforma Francisco Campos, em 1932, isolou a Filosofia para compor o curso voltado apenas a candidatos à carreira universitária do Direito.[2]

A Reforma Capanema, de 1942, retomou o ensino de Filosofia no Segundo Grau, mas os conteúdos estavam relacionados à cultura geral e ao patriotismo. Houve uma diminuição das aulas de Filosofia a partir de 1954 até a criação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a Educação Nacional em 1961. A LDB estabeleceu que o Conselho Federal de Educação (CFE) assumiria a responsabilidade sobre as disciplinas do Segundo Grau, restando aos Conselhos Estaduais a responsabilidade pela introdução das disciplinas complementares, entre elas a Filosofia, que permaneceu como complementar ou optativa até o Golpe de 1964.[3]

Até esse período, é possível notar que o ensino de Filosofia não acompanhou necessariamente uma visão humanizadora da escola, sendo que mesmo nos momentos em que era oferecida, a disciplina estava ligada de alguma maneira à ideologia que organizava o Estado e visava reger a sociedade, ou então acompanhava um senso de erudição, reservando a Filosofia para queles que seguissem uma carreira da qual ela fosse componente, como nos cursos de Direito. O movimento pendular da Filosofia nos currículos escolares vem então desde antes de a modernização e as transformações capitalistas no país.

Conforme afirma Silveira,[4] “daí em diante, a Filosofia passaria a sofrer um processo de extinção gradativa que se manifestou na forma de redução de programas e de carga horária, até culminar com sua efetiva eliminação dos currículos”. Mesmo antes do período ditatorial, as tendências educacionais mudaram no país. Segundo Luckesi,[5] a pedagogia tecnicista, que ganhou força nos anos 60, já ganhava terreno pelas parcerias educacionais com os Estados Unidos. Esse modelo educacional concebe a escola como centro de formação à necessidade de racionalização inerente à produção capitalista, limitando o conhecimento a apenas o que é observável, à objetividade em detrimento da subjetividade ou da interpretação em vias da transformação.

Nesse período, a Educação brasileira teve como foco principal o mercado de trabalho e a rápida formação de mão de obra especializada que atendesse às demandas de um mercado que estava em franca expansão. Assim, a formação do aluno passou a ser desenvolvida sob uma ótica pragmática, como uma forma de suprir as necessidades da economia brasileira. Além da formação do corpo de trabalho técnico, era necessário também que rapidamente fossem diplomados os professores que formariam aqueles que abasteceriam a mão de obra industrial no país.

A solução encontrada foi a criação de um Curso de Licenciatura Curto, o magistério. O egresso do segundo grau fazia mais um ano de especialização e já se tornava apto a desempenhar a função docente e a atuar na formação de mão de obra, o que revelou assim a forte tendência a uma educação de caráter técnico–funcional. Assim, uma rápida formação do corpo docente e uma rápida formação técnica atendiam a crescente demanda do ampliado mercado de trabalho da época.

Naquele período, a maioria das escolas estaduais de segundo grau possuía em sua grade curricular um curso profissionalizante, realizado juntamente às demais matérias, sendo que o segundo grau mais o curso profissionalizante tinham juntos uma duração de quatro anos. Assim, poucos eram os alunos que buscavam o ensino superior e, considerando que a oferta desses cursos técnicos contemplava os filhos da classe trabalhadora, muitos desses viam um “caminho natural” nos trabalho que exigisse mais as habilidades práticas e manuais para os quais tinham sido formados.

Por outro lado, como forma de limitar o senso crítico e o desenvolvimento da relação aluno/professor e a própria concepção de desenvolvimento humano dos alunos, buscou–se, através da supressão do ensino de filosofia e sociologia dos currículos da educação, um engessamento das capacidades reflexivas e principalmente do senso crítico do cidadão brasileiro em prol de conteúdos ufanistas e positivistas.

A suspensão do ensino filosófico foi imposta como um mecanismo de controle social, medida tomada dentro de um conjunto que visava suprimir e evitar qualquer atividade que fosse considerada subversiva à ordem vigente. Os valores da moral (vigente), religiosos e de servidão à pátria tomaram o lugar antes ocupado pela Filosofia nos currículos. Foram instituídas como obrigatórias as disciplinas de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) pelo Decreto–Lei n. 8692 de 1969.[6]

O Decreto–Lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, ampliou a repressão e o terrorismo governamentais às redes de ensino. O primeiro artigo desse decreto trouxe a “infração disciplinar” de professores, alunos e funcionários dos estabelecimentos de ensino público e particular. O artigo caracterizava essa infração enquanto aliciamento e incitação à greve, atentado contra pessoas, bens ou prédio, atos destinados à organização de movimentos subversivos, sequestro e o uso de estabelecimentos escolares para “fins de subversão”.[7]

Em 1971, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5692/71 afastou totalmente a Filosofia dos currículos escolares em virtude da concepção tecnicista de educação instaurada pelo no governo. Havia também o aspecto disciplinador, que trazia implícito o caráter de obediência desejada que permearia todo o sistema educacional da nação.[8]

A década de 1970 e início da década de 1980 foram marcados por muitas lutas em favor do retorno da Filosofia ao currículo escolar. Em 1976 foi fundada a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos (SEAF), cujo objetivo principal era o resgate da Filosofia crítica sobre os problemas sociais e, sobretudo, a luta pelo retorno da disciplina de Filosofia ao ensino médio. A Filosofia encontrava agora um novo desafio na educação brasileira, buscar uma redemocratização que desse mais pluralidade na educação, que resgatasse o valor das ciências humanas e o inserisse de vez na educação brasileira, valorizando a pessoa enquanto ser humano.[9]

É possível argumentar que a ditadura militar estruturou os currículos segundo uma demanda de ampliação por formação rápida e técnica que atendesse ao momento econômico vivido no Brasil. No entanto, é inegável o caráter repressor e de construção de obediência ufanista que fortemente influenciaram na supressão da oferta de ensino de Filosofia. Havia então uma relação entre a demanda vinda do mercado de trabalho e a ordenação ideológica construída a partir do Estado. Junto a esse processo, as classes trabalhadoras não eram sumariamente integradas às universidades que, apesar da vigilância e censura, mantinham a reflexão filosófica.

Toda a maioridade pensada no regime militar esteve ligada então ao engajamento social a partir de massiva formação de mão de obra, juntamente à formação de um senso de obediência ao status quo que estruturava a sociedade. O papel da Filosofia enquanto disciplina que serve ao fomento da inquietação aos educandos e de desnaturalização do mundo, era totalmente avesso ao processo implementado com largo emprego da força e da repressão. A maioridade construída, na visão kantiana, a partir da excitação que possibilita questionar e buscar esclarecer, era justamente combatida enquanto atividade subversiva.

Com o enfraquecimento do regime militar no início da década de 1980, cresceu o debate público da necessidade de liberdade e de ampla abertura. Universidades, professores, estudantes e diversos setores da sociedade, através de inúmeros movimentos e protestos, conseguiram que a Lei n. 5.692 (1971), que havia representado um retrocesso à educação no país, fosse alterada pela Lei n. 7.044 (1982). A partir daí, a disciplina ainda seria oferecida apenas no segundo grau como disciplina optativa, o que foi uma mudança limitada em vários sentidos, mas que descortinou um novo horizonte ao ensino de Filosofia e à Educação no país.[10]

Embora de maneira optativa, a disciplina foi retornando aos poucos aos currículos escolares. Na esteira das demandas para que a Filosofia fosse incluída na LDB, em 1996, isso foi possível com surgimento da LDB 9394/96 e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1999. Com isso, foi recomendado que a Filosofia complementasse os Temas Transversais dos PCNs, mas ainda não como disciplina curricular independente.

Em outubro de 2001, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, vetou o Projeto de Lei Complementar ao artigo 36 que tratava da obrigatoriedade de disciplinas de Filosofia e Sociologia no ensino médio. A justificativa à negativa foi a de que tal alteração teria grande implicação orçamentária, além da insuficiência de professores graduados nessas disciplinas frente à amplitude da proposta.

Além disso, o governo insistia no argumento de que a Filosofia, uma vez tratada transversalmente no ensino médio, poderia suprir os propósitos de natureza ética e moral conforme previamente havia sido estipulado. No entanto, a apologia à transversalidade revelou–se mais uma vez a secundarização da Filosofia na grade curricular brasileira.

Com uma intensa pressão por setores da sociedade, profissionais da área de Filosofia e com a realização de vários fóruns, em junho de 2008,[11] precisamente no dia 2, a sociedade venceu mais uma batalha e o artigo 36 da LDB foi alterado pela lei 11.684, fazendo–se obrigatória a inclusão da disciplina de Filosofia em todas as séries do Ensino Médio do Brasil. A assinatura da lei coube ao então Presidente da República em exercício José de Alencar Gomes da Silva.[12]

No ano de 2006 foi lançada a Universidade Aberta do Brasil (UAB).[13] A UAB não era uma universidade formal, mas uma coordenação das universidades públicas já existentes na oferta de cursos que visavam a interiorização na disponibilização de cursos na modalidade Educação à Distância (EAD). Dessa maneira, regiões até então sem oferta de cursos superiores poderiam contar com cursos organizados por instituições de renome. A ênfase inicial era promover o aumento de cursos de Licenciatura para o aumento de professores formados, bem como prover as formações pedagógicas e específicas para profissionais que já atuavam na docência.[14] Nesse contexto, a oferta de cursos de Licenciatura em Filosofia, entre outras áreas, teve aumento.

Ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a oferta de cursos superiores teve incremento a partir da expansão do programa Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e da expansão de cursos e universidades públicas pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI). Esses programas podem ter contribuído também para o fomento de cursos de graduação em Filosofia, mas são programas mais amplos e gerais.

Após nove anos da árdua conquista de 2008, essas disciplinas perderam mais uma vez na história sua obrigatoriedade curricular, desta vez por meio de uma Medida Provisória (MP 746/2016), impetrada pela Presidência da República e referendada pela Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, novamente em alteração à LDB.[15] A medida foi criticada por entidades e associações ligadas à área de Filosofia tanto pelo prejuízo aos currículos, mas também pela arbitrariedade na concepção e adoção da medida.[16]

Entre os governos de Fernando Henrique e de Lula houve uma virada importante. Enquanto o primeiro apontou a inexistência de quadros formados que justificasse a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, o segundo ampliou a oferta de cursos de licenciatura em universidades públicas, buscando a interiorização de cursos para que fossem formados novos professores e capacitados aqueles que já atuavam, mas necessitavam de diplomas em áreas específicas, processo este acompanhado pela atividade legislativa que organizou a obrigatoriedade do ensino de Filosofia.

Apesar dessa mudança, afirmar que houve uma transformação na concepção de Educação, que houve uma preocupação com a formação humanística e com uma população mais crítica, isso requer uma investigação mais detida nesse aspecto. Porque foi concomitante o aumento de cursos privados, especialmente na modalidade EAD, nas licenciaturas. Não é objeto do presente texto avaliar o impacto desse processo, mas é lugar comum o questionamento da qualidade desses cursos que hoje são responsáveis pela maioria dos professores formados anualmente. Havia também uma preocupação pragmática quanto à necessidade de formação de mão de obra especializada para a atuação docente.

Já nas eleições gerais de 2014, o Brasil estava mergulhado em crises sociais, econômicas e políticas. Em 2016, a situação política piorou de modo que a então presidente, Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), sofreu o processo de impeachment. Terminava o governo petista, que havia começado em 2003 com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. O vice–presidente Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), assumiu o poder já com rompimento prévio com Rousseff e implementou uma agenda de reformas e austeridade. Seu governo também se deu em meio a crises e críticas por setores da sociedade e do campo político.

A Reforma Educacional, contida na Lei 13.415 de 2017, foi concebida sem a participação efetiva dos profissionais da Educação e foi realizada a portas fechadas com a intenção de retomar o tecnicismo como elemento fundamental à educação pública.[17] Apesar da reorganização das disciplinas ter sido apresentada como caminho para maior autonomia dos alunos na escolha e nas definições de qual campo de conhecimentos almejam, houve a diminuição na oferta de disciplinas e a priorização daquelas requisitadas pelo mercado de trabalho. A Reforma não considerou as profundas deficiências da Educação brasileira e, principalmente, a disparidade social existente na sociedade e refletida na escolarização de diferentes grupos, favorecendo a reprodução dessas desigualdades.[18]

A Filosofia não é vista como uma disciplina com estreita afinidade à produtividade no campo econômico. E mesmo para aqueles que a defendem, não há uma clareza de como estruturar indicadores que demonstrem o resultado, na vida adulta, do ensino de filosofia durante a escolarização. Assim, é difícil tratar de resultados práticos, mesmo que a longo prazo, do ensino de Filosofia. Sem demonstrações quantificáveis e mensuráveis, sem uma clara relação com a geração de valor, o ensino de Filosofia não encontra um lugar fixo nos currículos do país.

O contexto de crise econômica que envolveu o processo de impeachment foi a justificativa para todas as ações subsequentes. Havia o projeto de reformar diferentes esferas da sociedade para que o gasto público fosse racionalizado e que a produtividade nacional aumentasse. Além de a agenda da cidadania ter sido diminuída frente às preocupações prioritárias de saúde da economia, a mudança no ensino médio acabou por deixar a Filosofia àqueles que podem se dedicar a ela, ou àqueles que não optem (claro que com um sentido de aptidão) por conhecimentos que sejam os mais valorizados pelo mercado de trabalho.

3. Educação, Filosofia e maioridade

Para iniciar o debate é necessário fazermos algumas definições e estabelecer relações entre elas. A Educação é uma prática humana que passa por diferentes concepções, direcionamentos e determinações segundo uma série de conhecimentos e habilidades necessários em cada sociedade e período histórico. Há processos e ambientes educacionais formais e informais, sendo que aqui nos centramos na escolarização formal do ensino básico.

As práticas educacionais seguem concepções teóricas, mais especificamente com uma pedagogia, que é propriamente uma concepção filosófica sobre a Educação. Filosofia é o campo no qual se dá a interpretação e compreensão sobre o que é a sociedade, assim como as expectativas sobre ela. À Filosofia não cabe apenas o campo metal, mas também da ação, uma vez que compreensão e interpretação são motores da ação.[19]

Considerando então o processo educacional como um processo que visa sistematizar conhecimentos e habilidades em etapas formativas, o apoio na Filosofia permite uma orientação a esse processo, uma fundamentação teórica que permite refletir sobre a sociedade, os indivíduos e a própria Educação.[20]

Podemos conceber também a Educação como um processo humanizador, que permite aos educandos se apropriarem de toda a cultura e conhecimentos desenvolvidos pela sociedade para que estejam aptos a agir na sociedade em que historicamente estão situados.[21] Pela Educação, as estruturas mentais dos educandos vão se construindo nos processos de apreensão e de interpretação, significação e ressignificação da realidade social.[22]

Há debates em campos como a Sociologia e a Filosofia sobre o que e de que forma essas disciplinas devem ser ensinadas no contexto escolar. Para alguns, os temas deveriam passar pela inserção da cidadania, pela apresentação sobre a sociedade e suas regras. Isso esvazia os conteúdos específicos desses campos e os coloca como disciplinas da disciplinarização, da introjeção passiva das normas sociais. Os documentos oficiais orientadores dos currículos, ao tratarem dessas disciplinas, por vezes citam esse aprendizado sobre a cidadania, mas é inerente à Sociologia e à Filosofia a problematização do que seja a cidadania. Por outro lado, alguns professores acreditam que os conteúdos específicos dessas disciplinas são muito densos e complicados para jovens em período escolar. A Sociologia e a Filosofia escolares seriam então diferentes daquelas da universidade. Nesse ponto, vale ressaltar a advertência de Gramsci de que

(...) deve–se destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos.[23]

A afirmação de Gramsci indica a desconstrução de que a Filosofia é apenas dos filósofos. No processo humanizador realizado pela Educação, a Filosofia é componente fundamental que permite a compreensão e interpretação da sociedade, de modo que o cotidiano seja desnaturalizado e visto de um ponto de vista crítico. É nesse sentido que podemos aproximar a Teoria Histórico–Cultural sobre a educação, que preconiza que alunos e professores devem se relacionar a partir de um processo humanizador que, diferente da perspectiva tradicional, que preza pela hierarquia e enciclopedismo, atente–se para as potencialidades educacionais que enaltecem a esfera das interrelações sociais.

Segundo Sforni,[24] a sala de aula, que deveria ser um ambiente coletivo de aprendizagem, é um dos grandes desafios enfrentados por professores, principalmente pela composição heterogênea do alunato. Para a autora, conceber os alunos enquanto sujeitos históricos pressupõe o papel da Educação no campo da formação social da consciência para que os educandos possam apropriar–se da experiência social da própria humanidade, incluindo os conhecimentos construídos ao longo de diferentes períodos. Mas, para que isso aconteça, é fundamental que haja uma adequada organização do ensino.

A organização dos currículos acompanha uma organização das etapas formativas e das expectativas atreladas à diferentes faixas etárias que as compõem. A escolha pelo debate sobre o ensino básico foi motivada porque, ao final desse ciclo formativo, espera–se dos jovens o desenvolvimento de habilidades e competências que os preparem para a vida adulta, para a maioridade jurídica, quando devem assumir plenamente, salvo algumas exceções, a plenitude de seus direitos e deveres na sociedade.

É justamente na Educação que temos a formação desses jovens para a vida cidadã e para o engajamento no mercado de trabalho. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) indica a necessidade de uma formação com base em princípios “éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN)”.[25] Além desses princípios, são listadas as habilidades e competências esperadas de cada ciclo de formação. É possível depreender que é esperado o desenvolvimento de uma maioridade baseada na autonomia, no juízo próprio que considera a coletividade ao interpretar e engajar–se na sociedade.

O desafio que encontramos aqui é o seguinte: como organizar o ensino para que a Educação seja um campo humanizador? Não há dúvidas que diferentes respostas podem ser apresentadas e que diferentes perspectivas teóricas apresentariam concepções variadas para essa questão. Para além da maioridade jurídica, queremos debater sobre um estado individual de maioridade do qual o ensino de Filosofia pode contribuir. E para melhor compreendermos essa proposta, buscamos aportes em Immanuel Kant.

Definindo a Educação em Sobre a Pedagogia, Kant concebe que

[...] a educação é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda a humana espécie a seu destino.[26]

Kant é um pensador importante na história da Filosofia, sobretudo pela contribuição que dá à educação sua obra Sobre a Pedagogia, na qual afirma que “o homem é a única criatura que precisa ser educada”.[27] Assim, a Educação é apontada como própria do homem, sendo ela entendida enquanto um elo de progresso entre as gerações e como uma comunhão de um processo agregador entre os indivíduos e toda a humanidade. Segundo Kant, o processo educativo tem início desde os cuidados com a infância até chegar à instrução formal, que vai proporcionar ao indivíduo o cumprimento de sua finalidade, que é a passagem de sua menoridade para a maioridade, pelo esclarecimento (Aufklärung), pela construção de sua autonomia. Kant foca a disciplina como fundamental no processo formativo, pois só a partir dela o homem sai do seu estado de menoridade e segue rumo ao cultivo de novas sementes para a humanidade, que têm como frutos a criticidade e a liberdade de ser e agir no mundo.

Kant propõe que a Educação deva ter um caráter disciplinador como forma de impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, compreendendo o homem enquanto participante do mundo sensível e inteligível.[28] Se nada se opõe na infância e na juventude, o indivíduo conservará uma selvageria a vida toda. Por isso, segundo Kant, a educação deve possuir uma parte negativa que é chamada de disciplina, sendo ela educadora para obediência. A disciplina, no entanto, possui dois aspectos: o primeiro deve ser obediência (que não se confunde com servidão absoluta) às determinações do governante, sendo este responsável por garantir o movimento natural e progressivo da razão em uma sociedade; e o segundo é a obediência à vontade que o próprio sujeito reconhece como racional e boa.[29] Desta forma Kant vê a disciplina como algo extremamente necessário no indivíduo para que sua vontade não seja corrompida pelas inclinações sensíveis.

A pedagogia de Kant nos leva a pensar em uma educação intelectual que busque desenvolver as diferentes potencialidades humanas, não apenas a memorização de fórmulas ou conceitos e mera reprodução de conteúdos. Kant resgata o verdadeiro sentido de educação intelectual, que, segundo ele, deve ser antes de tudo um exercício da inteligência com uma finalidade interna, o exercício de uma faculdade que contribui para o aperfeiçoamento das demais.[30]

É necessário então compreender a relação entre maioridade e esclarecimento no pensamento kantiano. Indica Adorno que

A exigência de emancipação parece ser evidente numa democracia. Para precisar a questão, gostaria de remeter ao início do breve ensaio de Kant intitulado “Resposta à pergunta: o que é esclarecimento?”. Ali ele define a menoridade ou tutela e, deste modo, também a emancipação, afirmando que este estado de menoridade é auto–inculpável quando sua causa não é a falta de entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir–se do entendimento sem a orientação de outrem. “Esclarecimento é a saída dos homens de sua auto–inculpável menoridade”.[31]

Nas palavras do próprio Kant,

Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir–se a si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento (Aufklärung).[32]

É possível notar que, para Kant, esclarecimento não é apenas o desenvolvimento racional do indivíduo, mas envolve a vontade e a coragem do exercício autônomo dos juízos próprios baseados na reflexão crítica racional. Menoridade não é impotência ou estado natural, não deve ser confundida com uma infância, uma vez que esta se trata de uma relação de dependência. A menoridade de que falamos é um estado das coisas, é uma circunstância, não é um direito moral ou mesmo intelectual, assim como não é uma privação de um direito.

Na menoridade, se obedece em qualquer circunstância, seja no uso privado, seja no uso público, e por conseguinte não se raciocina. Na maioridade, desconectam–se raciocínio e obediência. Faz–se valer a obediência no uso privado e faz–se valer a liberdade total e absoluta de raciocínio no uso público.[33]

Indica Foucault que o esclarecimento “é que vai dar à liberdade a dimensão da maior publicidade na forma do universal e que manterá a obediência apenas nesse papel privado, digamos nesse papel particular que é definido no Interior do corpo social”.[34] Kant chama a atenção para o fato de que, lentamente, as pessoas chegariam ao esclarecimento, o que nos leva a pensar que este é um movimento inequívoco, um processo lento e gradual de formação. Por outro lado, se levado de forma abrupta, jamais se produzirá consciências verdadeiras. Trata–se de um lento caminhar, um movimento natural da razão, que vai paulatinamente se instalando na consciência do sujeito.

Na concepção kantiana, a Educação tem papel importante na humanização de cada indivíduo. Segundo o próprio, “uma boa educação é justamente a fonte de todo bem neste mundo. Os germes que são depositados no homem devem ser desenvolvidos sempre mais”.[35] Assim, a Educação é a responsável por auxiliar e conduzir o ser humano ao estado de maioridade, tornando–o esclarecido e autônomo. É nesse ponto que retomamos o ensino de Filosofia com potencial para a maioridade compreendida enquanto resultante do processo de esclarecimento.

Conforme o ordenamento constitucional estabelecido em um país, a maioridade jurídica é a condição legal para a atribuição da plena capacidade de ação de uma pessoa após o indivíduo atingir a idade previamente estabelecida. Este dispositivo é motivado pela necessidade de que a pessoa tenha adquirido uma maturidade legitimada mutuamente entre seus concidadãos. Ao atingir a maioridade pela idade, o Estado obriga o sujeito à sua maioridade jurídica; o indivíduo, ao assumi–la, o faz sabendo previamente que deve, ao exigir seus direitos, também reconhecer a autonomia e a liberdade dos outros. Esse reconhecimento mútuo, que também está na base da noção de maioridade de âmbito jurídico, é o imperativo da sociedade e do reconhecimento de direitos que torna possível a sociabilidade. O Código Civil Brasileiro de 1916 estabelecia que a maioridade iniciava aos 21 anos, porém houve uma modificação do Código Civil pela Lei 10.406/02,[36] o que alterou a idade de referência para a maioridade aos 18 anos completos, quando se habilita o homem e a mulher à prática de todos os atos da vida civil.

Já a compreensão kantiana difere desta visão, por se referir diretamente à dimensão política da sociedade, não restringindo apenas ao âmbito jurídico. Sua compreensão aponta para a maioridade como sendo o “uso público da razão em todas as questões”.[37] Uma vez que a menoridade em Kant não tem seu sinônimo em infância, esta compreendida enquanto etapa da vida na qual há uma tutela legítima, visto que a razão ainda não foi desenvolvida, o adulto, segundo o texto constitucional não é necessariamente o indivíduo na maioridade kantiana.

O texto jurídico visa o regramento da maioridade na sociedade com base em um critério direto, a idade. Ele tem a função de demarcar quando a menoridade se encerra e quando se inicia a maioridade. Para além dessa delimitação, a Constituição estabelece que a Educação é um direito de todos os brasileiros e que cabe à família e ao Estado garanti–la. Ainda segundo a Constituição, a Educação cumpre a função de desenvolver o indivíduo de modo que este esteja qualificado ao mercado de trabalho e apto ao exercício da cidadania.[38] Podemos então notar que a obrigação à maioridade é amparada pela compreensão sobre os direitos básicos e fundamentais necessários para o pleno desenvolvimento de cada pessoa humana, sendo a Educação um direito essencial nesse processo.

Apesar do que está na Constituição, as políticas governamentais são fundamentais na maneira como são atendidos os direitos básicos de todas as pessoas. A Constituição não estabelece quais os currículos devem ser implementados e não determina orçamentos fixos e alocações de recursos para as diferentes políticas públicas. Cada governo busca imprimir uma visão sobre a sociedade e o papel dos indivíduos nela, além do fato de que cada momento histórico apresenta particularidades sobre a sociabilidade e os sistemas produtivos.

Há uma intersecção possível no sentido de maioridade empregado pelo texto constitucional e por Kant. Em ambos há uma ideia de exercício pleno, ativo e público de capacidades e faculdades desenvolvidas até então, que justamente prepararam o indivíduo para esse momento que representa também uma comunhão com a coletividade na qual está inserido. Acompanhando o texto constitucional, os documentos oficiais da Educação se ocupam em indicar o conjunto de conhecimento e habilidades que devem ser desenvolvidas por jovens para que possam assumir autonomia e independência na fase adulta.

Outra aproximação também é o reconhecimento de que a Educação é um direito fundamental a todos e que se constitui enquanto meio de aprimoramento simultâneo do indivíduo e da sociedade. A Educação permite não apenas a formação organizada em um conjunto de conhecimentos determinados, mas também na comunhão entre o indivíduo e sua humanidade ao permitir que partilhe do legado de conhecimentos construídos ao longo das gerações.

Nesse processo humanizador, o ensino de Filosofia tem contribuições fundamentais. Vimos que Gramsci acredita que filosofar não é um luxo de eruditos, mas é próprio do cotidiano de todos, é um estar no mundo. Enquanto campo de conhecimento voltado à desnaturalização e estranhamento da sociedade vivida, faz–se então necessário refletir qual maioridade a Filosofia permite vislumbrar.

Viver em uma sociedade democrática e republicana requer que os cidadãos não apenas cumpram com as formalidades do sistema político, mas que sejam responsáveis, vigilantes quanto à res publica, a coisa pública. Pela Filosofia, pela desnaturalização do status quo da sociedade, é possível que haja uma comunhão necessária à coletividade, uma obediência a compromissos coletivos assumidos, mas a partir do exercício autônomo de juízos próprios, para que essa obediência seja aquela baseada no cumprimento dos compromissos dos quais o indivíduo buscou participar e compreender.

Ao mesmo tempo que Kant indica a necessidade de coragem ao esclarecimento, a agência individual para esse processo, também há a afirmativa de que os governos são responsáveis por permitir e estimular o movimento progressivo do esclarecimento. São então processos concomitantes o trajeto progressivo no esclarecimento e a abertura das vias para essa caminhada. Conhecer apresenta novos elementos a questionar, a formulação de novas proposições, à desnaturalização do que se constituía enquanto certeza. Entendemos justamente que a coragem se apresenta na dúvida, na incerteza, na tomada de decisões, não a estática, na constância.

Seguindo a advertência de que a menoridade seria uma tutela distinta daquela da infância, entendemos que a infância, antes da vida adulta segundo a lei, deva ser realmente um processo de preparação ao exercício da maioridade, à expressão autônoma dos juízos. Para tal, o processo educacional deve ser permeado por conhecimentos e conteúdos que estimulem o desenvolvimento ativo dessa maioridade, sendo que o ensino de Filosofia ocupa aí um lugar privilegiado por sua base no raciocínio desnaturalizador e questionador.

A Filosofia se torna uma ferramenta importante para que a chegada à maioridade legal seja acompanhada por uma maturação dos juízos, por uma compreensão dos compromissos sociais partilhados por todos que pertencem a uma mesma coletividade e, principalmente, a necessidade de engajamento ativo que demanda uma cidadania republicana.

O ensino de Filosofia não secundariza ou menospreza os conhecimentos e habilidades que sejam necessários à vida do trabalho. A Filosofia deve ser vista como possibilitadora da reflexão sobre realidades e possibilidades distintas daquelas vividas no imediato. Além disso, a Filosofia, em seu caráter desnaturalizador, permite a decomposição da realidade vivida em fragmentos, sejam eles históricos ou em desconstrução no presente. Os sistemas produtivos de todas as épocas demandam inovação e capacidades diagnósticas em vistas de melhoria. Kant acredita em um movimento da maioridade ligando o indivíduo que busca seu desenvolvimento e se conecta a um movimento maior e coletivo de esclarecimento. É impossível encontrar a melhoria dos sistemas produtivos fora da intersecção com os indivíduos em uma busca pelo esclarecimento, uma vez que não é de se esperar a mudança de esferas sociais em indivíduos que permanecem os mesmos.

O esclarecimento em Kant é um processo gradual, lento, diferente da expectativa da razão técnica e instrumental do mercado para a geração de valor de maneira prática e rápida. O que apontamos é que essas duas lógicas não são excludentes, mas não é possível esperar que o ensino de Filosofia seja gerador de valor ou de produtos palpáveis. Sua contribuição está no nível da subjetividade individual e na difusa (e compartilhada) consciência coletiva, especialmente no real valor republicano que se espera de uma sociedade democrática. Secundarizar o ensino de Filosofia por este não ser pautado na produção de conhecimentos pautados diretamente na geração de mais valor na esfera produtiva econômica é ignorar a relação entre a importância do questionamento e reflexão para a mudança e inovação, competências fundamentais ao próprio sistema produtivo.

4. Considerações finais

O pensamento kantiano, ao tratar da maioridade e do esclarecimento, busca traçar um senso individual e coletivo de um processo contínuo do aprimoramento e desenvolvimento da humanidade que constitui cada indivíduo. Nesse sentido, o período de formação escolar é fundamental e as políticas educacionais adequadas são aquelas que justamente consideram esse desenvolvimento humano essencial para que se construa, de fato, uma maturidade baseada na autonomia.

O ensino de Filosofia enquanto disciplina escolar é, sem dúvida, importante nesse processo movimento progressivo do esclarecimento como preconizava Kant. Entendendo que essa oferta está ligada à política educacional organizada a partir do Estado, é necessário entender se a disciplina é oferecida e como se relaciona dentro do currículo, além de entender os contextos de cada governo em termos ideológicos, políticos, culturais e econômicos.

No Brasil, a oferta de Filosofia no ensino básico teve um movimento pendular, alternando momentos de inclusão plena ou limitada, assim como momentos de exclusão. A Filosofia, não sendo um campo de conhecimentos voltado à construção da obediência e enaltecimento ao status quo, passou tanto pela descaracterização quanto pela retirada. Mas a manutenção enquanto optativa a torna pouco atrativa porque não é geradora de valor. O valor da Filosofia sobre a maioridade, mesmo que reconhecido em documentos oficiais, é solapado pela lógica econômica. Atualmente fantasiado de autonomia da escolha individual, o significado filosófico de maioridade permanece sob a secundarização pela formalidade do que é a maioridade na definição jurídica.

Apesar do argumento de uma reforma para que o jovem possa protagonizar seu futuro, tornar–se responsável por suas escolhas, a via foi a da separação, do enxugamento. Por trás do argumento de construção da maioridade a partir das escolhas, de um respeito à individualidade construída, o plano geral de diminuição do investimento público e de flexibilizações da seguridade social são justamente desestimuladores para que os jovens problematizem o mundo e questionem o seu lugar nele. É estimulado que os jovens pensem sua maioridade em um caminho mais adequado às suas “aptidões naturais”. Esse processo reforça que a Filosofia ficará para aqueles que podem se dedicar a ela, que não precisam estudar imediatamente o que lhes garanta maior empregabilidade.

Para a maioria dos jovens, majoritariamente aqueles oriundos das classes trabalhadoras, a maioridade virá pelo engajamento no mercado de trabalho, sem um esclarecimento que conte com uma engajada reflexão de sua relação com a sociedade, mas com a imagem de que a autonomia é alcançada quando os rendimentos são suficientes para pagar as despesas pessoais. A Filosofia não é organizada na política educacional como um componente necessário à autonomia individual, sendo os direitos civis da maioridade da vida adulta uma etapa da vida social e não um resultado de um processo iniciado na vida escolar.

Não queremos aqui afirmar que a permanência ou não da Filosofia nos currículos seja determinante para que os jovens possam, ao passar para a maioridade social, possam também assumir um papel de maior autonomia e protagonismo sobre suas vidas. Tal afirmação seria inclusive contraditória com os achados de que a inserção da Filosofia nos currículos algumas vezes acompanhou princípios ideológicos organizados na esfera estatal. No entanto, cremos que o ensino de Filosofia no ensino básico, quando realizado a partir do compromisso de apresentação dos conhecimentos relativos ao campo de estudos filosóficos, minimamente permite uma educação mais plural e que fornece insumos para a desnaturalização e desconstrução da sociedade vivida, justamente a etapa primordial para que se busque o esclarecimento e a maioridade em sentido filosófico.

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Notas

[1] Valverde, Antonio José Romera y Esteves, Anderson Alves, “O movimento pendular da disciplina Filosofia no ensino médio”, Cognitio–Estudos, 12 (2015), p. 259–270.
[2] Cesar, Renata Paiva, “O ensino de Filosofia no Brasil”, Pandora Brasil, 38 (2012), p. 1–11.
[3] Rodrigues, Zita Ana Lago, “O ensino da Filosofia no Brasil no contexto das políticas educacionais contemporâneas em suas determinações legais e paradigmáticas”, Educar em Revista, 46 (2012), p. 375–397.
[4] Silveira, Renê José Trentin, Ensino de filosofia no segundo grau: em busca de um sentido, Campinas, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, 1991.
[5] Luckesi, Cipriano Carlos, Filosofia da Educação. São Paulo, Cortez, 2017.
[6] Brasil, Decreto–Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969. Brasília, 1969.
[7] Piletti, Nelson, História da Educação no Brasil, São Paulo, Editora Ática, 1990.
[8] Cesar, Renata Paiva, O ensino de Filosofia no Brasil, en Pandora Brasil, p. 1–11.
[9] Horn, Geraldo Balduíno, “Apresentação”, Educar em Revista, 46 (2012).
[10] Ibid.
[11] Brasil, Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, Brasília, 2008.
[12] Pinho, Romana Isabel Brázio Valente, “O Ensino de Filosofia no Brasil: Considerações Históricas e Politico–Legislativas”, Revista Educação e Filosofia, 28 (2014).
[13] Brasil, Decreto no 5.800/2006, de 09 de junho de 2006, Brasília, 2006.
[14] Bresolin, Keberson, EAD: Elementos Básicos, Pelotas, NEPFIL online, 2014.
[15] Brasil, Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, Brasília, 2017b.
[16] Deina, Wanderley José, “Filosofia no Ensino Médio: considerações sobre a reforma educacional brasileira a partir do pensamento de Theodor Adorno”, Sofia, 6 (2017), p. 5–25.
[17] Ribeiro, Jéssica, “A não–obrigatoriedade do ensino de Filosofia e a ideologia neoliberal: notas acerca de um retrocesso político e educacional”, Saberes, 19 (2018), p. 69–82.
[18] Hernandes, Paulo Romualdo, “A reforma do Ensino Médio e a produção de desigualdades na educação escolar”, Educação, 44 (2019), p. 1–19.
[19] Luckesi, Cipriano Carlos, Filosofia da Educação, 2017.
[20] Aranha, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. São Paulo, Moderna, 2006.
[21] Pimenta, Selma Garrido, Docência no ensino superior, São Paulo, Cortez, 2005.
[22] Dalbério, Osvaldo. “Ética, moral e valores do professor e do aluno”, Revista Triângulo, 4, (2011).
[23] Gramsci, Antonio, Concepção dialética da história, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995, p. 11.
[24] Sforni, Marta Sueli de Faria, “Interação entre Didática e Teoria Histórico–Cultural”, Educação e Realidade, 40 (2015).
[25] Brasil, Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Educação é a Base, Brasília, 2017a.
[26] Kant, Immanuel, Sobre a pedagogia, Piracicaba, UNIMEP, 1996, p. 19.
[27] Ibid, p. 11.
[28] Kant, Immanuel, Sobre a pedagogia.
[29] Ibid.
[30] Ibid.
[31] Adorno, Theodor Ludwig Wiesengrund, Educação e Emancipação, São Paulo, Paz e Terra, 1995, p. 169.
[32] Kant, Immanuel, Textos Seletos, Petropólis, Vozes, 1985, p. 100.
[33] Foucault, Michel, O governo de si e dos outros: curso no Collège de France (1982–1983), São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 36.
[34] Ibid.
[35] Kant, Immanuel, Sobre a pedagogia, p. 23
[36] Brasil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Brasília, 2002.
[37] Kant, Immanuel, Textos Seletos, p. 104.
[38] Brasil, Constituição Cidadã, de 05 de outubro de 1988, Brasília, 1988.
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